Duas obras indispensáveis de Franz Kafka

Por Pedro Fernandes


A metamorfose



Franz Kafka intitulou sua narrativa de Die Verwandlung, cuja tradução literal é “A transformação”. Sabe-se que o escritor era uma tipo extremamente meticuloso, obsessivo inclusive, com a utilização das palavras; conta-se que, talvez por isso, tenha se dedicado a escrever em outra língua totalmente diferente da sua, pela possibilidade de fugir de qualquer ruído enfadonho em torno da atividade de um escritor. Gostava de poder contar com a precisão da palavra. Assim, não utilizou o termo metamorfose, que também existe em alemão e que tem um significado mais generalista que “transformação”; refere-se especificamente à mudança que se produz quando os seres humanos se convertem em animais, plantas etc. 

“Eu traduzi o livro de contos cujo primeiro título é A transformação e nunca soube por que todo mundo resolver batizá-lo por A metamorfose”, explicou Jorge Luis Borges numa entrevista publicada no jornal El país de 3 de julho de 1983. “É um disparate. Eu não sei a quem ocorreu traduzir assim essa palavra do mais sensível alemão. Quando trabalhei com a tradução da obra, o editor insistiu em deixá-la assim porque já havia sido feita famosa e estava vinculada a Kafka”. 

Bom, o leitor, já sente pelo limite da polêmica que um título dessa natureza não é qualquer título. E, polêmicas à parte, o caso é que a primeira vez que li alguma coisa de Franz Kafka não comecei por esse livro (geralmente o do ritual de iniciação à obra do escritor tcheco). Li primeiro O processo comentado na segunda parte dessas anotações. Mas, o que pude sentir, e é essa uma opinião muito pessoal e sentimento muito movido por certa sensibilidade literária, foi uma angústia que beira ao estágio de absurdez. Alguns leitores do seu tempo (o de Kafka) teriam encontrado na novela o mais legítimo humor; outros teriam morrido sem saber sua significação. E estou para o segundo grupo.

Mas, serei arrogante se disser que o leitor que não se deixar tomar por esse duplo sentimento, ainda não está preparado para ler Kafka e deve tentar voltar a lê-lo algum tempo depois? Esse sentimento tocou-me a primeira vez que li o escritor (e foi com O processo, como disse), mas em A metamorfose a coisa é mais aguda, e contrario uma opinião corrente de que é o primeiro e não este o texto capaz de levar o leitor ao absurdismo da existência. Não irei medir ou colocar a duas obras numa balança. Quem sou, ou o que posso eu?

Encarnei a própria couraça de inseto de Gregor Samsa e com ele pude sentir a forma de tratamento devotada pelos da casa. Entretanto, há nisso tudo um fio de lucidez que perpassa a obra: a necessidade de encasulamento de Samsa é, digamos assim, a necessidade de a própria família aos poucos se libertar da necessidade de tê-lo como a figura mais importante da casa. Finda por ser uma morte em vida que proporcionará aos da casa outra posição no mundo. São, sem dúvidas dois movimentos os que povoam o substantivo do título: uma metamorfose da personagem - que é o próprio absurdo do mundo - e uma metamorfose da família - que é a reação, o fio de lucidez necessário à própria existência humana.

O processo



Um homem detido sem razão. É este o ponto de partida para uma das obras mais emblemáticas de Franz Kafka. O manuscrito de O processo foi vítima também de um longo processo (num jogo de a vida imita a arte e vice-versa). “Alguém teve que caluniar a Josef K. porque, sem que houvesse feito nada de mal, foi arrastado numa manhã”, assim diz o começo da narrativa para logo seguir com as peripécias do protagonista que sequer chega a saber por qual razão o acusam. 

Os manuscritos dessa obra foram parar em mãos de duas senhoras sobreviventes do Holocausto, residentes em Israel e  que, de repente, se sentiram como K. porque devido ao conflito jurídico entre o seu país e a Alemanha por causa dos papéis de Kafka podem perder a herança que poderia servir-lhe de uma poupança capaz de livrá-las da pobreza.¹ Questões à parte (voltarei a ela numa postagem só para desenvolver esse imbróglio, inclusive, saber como esses papéis foram parar em Israel), o fato é que O processo teve também a sua gênese conturbada.

O romance não existiria se não fosse certo cuidado do amigo íntimo do escritor, Max Brod, em não dar fim aos manuscritos confiados por Kafka. A ordem do escritor era expressa: passada a sua morte, Brod devia se desfazer dos papéis. Mas, segundo o próprio Brod, que publicou o romance em 1925, o texto foi apresentado tal como deixou o escritor, inacabado. E veio a lume por uma única razão: depois de receber os papéis do amigo, em 1920, e lê-los tardiamente, descobriu que a obra mantinha uma coerência capaz de servir aos leitores.

Franz Kafka escreveu O processo entre 1914 e 1915. E em relação a A metamorfose, obra que mesmo carregada de certa atmosfera desorientada; a narrativa avança sobre um estágio de avulsão porque não há nenhuma referência que poupe o leitor do sentido que invade a personagem principal. Note o leitor que no primeiro romance há a presença do indicativo de que tudo pode ser um eterno sonho como leu Jorge Luis Borges. Mas aqui, a sensação é de que tudo, de fato, se passa externo ao personagem. 

K. é tomado de uma sequência quase infinda de surpresas surreais produzidas por uma lei do acaso, obscura e inacessível, mas em perfeita consonância com o aparelho social que tudo legitima em nome dos artifícios da burocracia. Acreditando-se pertencer a esta lei, o que assistimos é a execução (no sentido de prisão) desse procurador de um grande banco aos ditames desse regime insondável. Ninguém terá trabalhado melhor o absurdo e o insólito do que o escritor tcheco com esse livro.

Numa resenha de Alfredo Monte, leio que O processo “mostra um mundo em crise, onde lei e justiça estão em pólos opostos, onde todos os valores e alicerces que achamos seguros e sólidos se viram contra nós, e ainda fazem com que acreditemos que carregamos alguma culpa, identificada e punida.”

O processo angustiou-me profundamente. É uma ampliação do pesadelo de A metamorfose. Fui K. sem nunca entender o real motivo de sua condenação ou a razão dos episódios surreais que vão povoando sua existência. Isso é um claro convite à releitura numa ocasião mais tarde. Não é o que diz Italo Calvino, que um grande livro nunca cessa de oferecer questões aos seus leitores? 

Mas, parece-me, a essa altura que o não-entender é quase uma característica da literatura de Kafka: provocar no leitor o desnorteamento sofrido por seus personagens. Desnorteamento que se confunde ou se conforma com aquele provocado pela própria irrealidade do mundo. O absurdo. A surdez humana diante daquilo que ela própria criou.


Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #607

Boletim Letras 360º #597

Han Kang, o romance como arte da deambulação

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #596