O novo livro de José Saramago
Por Pedro Fernandes
1. Aconteceu o que eu previ numa sondagem sobre o novo romance de José Saramago publicada certa vez por aqui. Saiu pela Fundação José Saramago e pela editora responsável pela obra do escritor português em Portugal, a Caminho, uma continuidade de O caderno.
2. O segundo volume é uma continuidade do primeiro que reunia textos escritos para o blog de Saramago. O caderno 2, que traz um texto de Umberto Eco sobre o primeiro volume, acrescentado aí como um prefácio à obra que reúne o material publicado de setembro de 2008 às últimas entradas para o blog, em novembro de 2009.
3. A exemplo do primeiro volume é uma antologia de textos que representam as reflexões, as opiniões, as sugestões, as críticas aos mais diversos assuntos e sobre as mais diversas questões costuradas pelo olhar atento de um escritor sempre inquieto com o que lhe rodeia. Inquieto e ativo nas discussões sobre as idas e vindas da comunidade humana.
4. Até agora só dispomos da edição portuguesa; aqui no Brasil, pelo menos em consulta feita hoje no site da editora oficial do escritor, a Companhia das Letras, não há sequer um informe de quando teremos o lançamento de uma edição nacional. De todo modo, aos leitores saramaguianos mais afoitos, como eu, nada que uma visitinha às livrarias de além-mar online resolva essa demorada espera.
5. "Um blogger chamado Saramago" é o título do texto de Umberto Eco e transcrevo a seguir.
*
Curiosa
personagem, este Saramago. Tem oitenta e sete anos e (diz ele) alguns achaques,
ganhou o Nobel, distinção que lhe permitiria nunca mais produzir nada porque
seja como for já tem no Panteão o seu lugar garantido (o avaríssimo Harold
Bloom definiu-o "o romancista mais dotado de talento ainda em vida… um dos
últimos titãs de um género literário em vias de extinção"), eis que
aparece a manter um blog onde se mete um pouco com toda a gente, atraindo sobre
a sua pessoa polémicas e excomunhões vindas de muitos lados - mais
frequentemente não por dizer coisas que não deve dizer mas porque não perde
tempo a medir as palavras - e talvez o faça mesmo de propósito.
O quê, ele?
Ele que cuida da pontuação ao ponto de a fazer desaparecer, que na sua crítica
moral e social nunca leva o problema a peito, mas poeticamente o contorna nos
modos do fantástico e do alegórico, de modo que o seu leitor (embora
suspeitando que de te fabula narratur) terá de pôr muito de si para compreender
até onde vai parar o apólogo - como no seu Ensaio sobre a Cegueira -, faz
viajar o leitor numa névoa leitosa em que nem sequer os nomes próprios, de que
é bastante parco, dão um sinal claramente reconhecível, ele que no Ensaio sobre
a Lucidez faz uma opção política decidida com base em enigmáticos votos em
branco? E este escritor fantasioso e metafórico vem dizer-nos
despreocupadamente que Bush é de "uma ignorância abissal, e uma expressão
verbal confusa perenemente atraída pela irresistível tentação do puro
despropósito", cowboy que confundiu o mundo com uma manada de vacas, que
não sabemos sequer se pensa (no sentido nobre da palavra), robot mal programado
que constantemente mistura mensagens que tem registadas lá dentro, mentiroso
compulsivo, corifeu de todos os outros mentirosos que o aplaudiram e serviram
nos últimos anos? E este delicado tecelão de parábolas usa palavras que não
deixam margem para dúvidas quando define o dono da editora que o publica? E
este ateu manifesto, para quem Deus é "o silêncio do universo e o homem o
grito que dá sentido a este silêncio", repõe Deus em cena para se
interrogar sobre o que pensa Ratzinger? E, militante comunista (ainda
tenazmente), põe-se a gritar que "a esquerda não tem uma puta ideia do
mundo em que vive", e ainda por cima se queixa de não ter tido resposta
(sei lá, uma expulsão, uma excomunhão ao menos)? E arrisca-se à acusação de
anti-semitismo por ter criticado a política do Governo de Israel simplesmente
esquecendo-se, na sua irada participação nas desventuras palestinas, de se
lembrar - como uma equilibrada análise pretenderia - que há quem negue o
direito à existência de Israel? Mas ninguém leva em conta que quando fala de
Israel Saramago pensa em Jahvé, "Deus feroz e rancoroso", e neste
sentido não é mais anti-semita do que é antiariano e certamente anticristão,
dado que para todas as religiões procura ajustar contas com Deus - que
evidentemente, chame-se como se chamar nas várias línguas, não cessa de o
importunar. E ser importunado por Deus é certamente motivo de ira furibunda
contra todos os que dele fazem armadura.
Se tivesse
sempre em conta os prós e os contras, Saramago também saberia que há inventivas
e inventivas. Cito (de cor) Borges, que citava (talvez de cor) o doutor
Johnson, que citava o facto daquele tal que insultava assim o seu adversário:
"Senhor, a vossa mulher, com a desculpa de ter um bordel, vende tecidos de
contrabando." E afinal Saramago não faz cerimónias, ou seja, não o manda
dizer por outro e, na sua actividade de comentador diário da realidade que o
rodeia, tira a desforra sobre toda a imprecisão sinistra das suas fábulas.
Tem-se
falado muito do ateísmo militante de Saramago. Com efeito, a sua polémica não é
contra Deus: uma vez admitindo que "a sua eternidade é só a de um eterno
não-ser", Saramago poderia estar sossegado. A sua aversão é contra as
religiões (e é por isso que o atacam de vários lados, negar Deus é concedido a
todos, enquanto polemizar com as religiões põe em causa as estruturas sociais).
Uma vez,
precisamente estimulado por uma das intervenções anti-religiosas de Saramago,
reflecti sobre a célebre definição de Marx, para quem a religião é o ópio dos
povos. Mas é verdade que as religiões têm sempre todas esta virtude soporífera?
Saramago várias vezes tem atacado as religiões como fontes de conflito: "As
religiões, todas elas, sem excepção, nunca servirão para aproximar e
reconciliar os homens; pelo contrário, foram e continuam a ser causa de
sofrimentos indescritíveis, de chacinas, de monstruosas violências físicas e
espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da mísera história
humana" (La Repubblica, 20 de Setembro de 2001).
Saramago
concluía algures que "se fôssemos todos ateus viveríamos numa sociedade
mais pacífica". Não tenho a certeza de que tivesse razão, e parece que
indirectamente lhe teria respondido o papa Ratzinger na sua encíclica Spe
salvi, em que dizia que é o ateísmo dos séculos XIX e XX, se bem que se tenha
apresentado como protesto contra as injustiças do mundo e da história
universal, que fez que "de tal premissa tenham resultado as maiores
crueldades e violações da justiça".
Talvez
Ratzinger pensasse naqueles sandeus de Lenine e Estaline, mas esquecia-se que
nas bandeiras nazis estava escrito "Gott mit uns" (que significa
"Deus está connosco"), que falanges de capelães militares benzeram os
arruaceiros fascistas, que inspirado em princípios religiosíssimos e apoiado
por Guerrilheiros do Cristo-Rei era o massacrador Francisco Franco
(independentemente dos crimes dos adversários, foi sempre ele que começou), que
religiosíssimos eram os Vandeanos contra os Republicanos, que até tinham
inventado uma Deusa Razão, que católicos e protestantes se massacraram
alegremente durante anos e anos, que tanto os Cruzados como os seus inimigos
eram impelidos por motivações religiosas, que para defender a religião romana
se puseram os leões a comer os cristãos, que por razões religiosas se acenderam
inúmeras fogueiras, que religiosíssimos são os fundamentalistas muçulmanos, os
autores do atentado das Twin Towers, Osama e os talibãs que bombardearam os
Budas, que por razões religiosas se opõem a Índia e o Paquistão, e por fim que
foi a invocar God Bless America que Bush invadiu o Iraque.
Por isso me
punha a reflectir que talvez (se por vezes a religião é ou foi o ópio dos
povos) com maior frequência tem sido a sua cocaína. Creio que esta é também a
opinião de Saramago e ofereço-lhe a definição - e a sua responsabilidade.
Saramago blogger é um zangado. Mas haverá realmente um hiato entre esta prática
de indignação diária sobre o transeunte e a actividade de escrita de
"opúsculos morais" válidos tanto para os tempos passados como para os
futuros? Escrevo este prefácio porque sinto ter alguma experiência em comum com
o amigo Saramago, que é a de escrever livros (por um lado) e por outro a de nos
ocuparmos de crítica de costumes num semanário. Sendo o segundo tipo de escrita
mais claro e divulgador que o outro, muita gente me tem perguntado se eu não
despejaria nas pequenas peças periódicas reflexões mais amplas feitas nos
livros maiores. Não, respondo eu, ensina-me a experiência (mas creio que o
ensina a todos os que se encontrarem em situação análoga) que é o impulso de
irritação, a dica satírica, a chicotada crítica escrita à pressa, que fornecerá
a seguir o material para uma reflexão ensaística ou narrativa mais
desenvolvida. É a escrita diária que inspira as obras de maior empenho, e não o
contrário.
E pronto, eu
diria que nestes breves escritos Saramago continua a fazer a experiência do
mundo tal como desgraçadamente ele é, para depois o rever a uma distância mais
serena, sob a forma de moralidade poética (e às vezes pior do que é - embora
pareça impossível ir mais longe).
Mas depois,
estará realmente sempre assim tão zangado este mestre da filípica e da
catilinária? Parece-me que além da gente que ele odeia também existe a gente
que ele ama, e eis as peças afectuosas dedicadas a Pessoa (não se é português
em vão) ou a Jorge Amado, a Carlos Fuentes, a Federico Mayor, a Chico Buarque
de Hollanda, que nos mostram que este escritor é pouco invejoso dos colegas e
sabe tecer-lhes delicadas e ternas miniaturas.
Para não
falar (e eis o retorno aos grandes temas da sua narrativa) de quando da análise
do quotidiano salta para os grandes problemas metafísicos, para a realidade e a
aparência, para a natureza da esperança, para como são as coisas quando não
estamos a olhar para elas.
Então volta
à cena o Saramago filósofo-narrador, já não zangado mas meditativo e incerto.
Contudo não nos desagrada mesmo quando se enfurece. É simpático.
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