José Saramago, por João Marques Lopes

edição portuguesa da Biografia de José Saramago

Numa homenagem à vida e obra do escritor e Prêmio Nobel José Saramago, João Marques Lopes se lança com uma leitura da vida de um dos mais importantes autores do panorama literário mundial, revelando pormenores da vida de Saramago. O lançamento de Biografia José Saramago foi feito no dia 21 de janeiro de 2010, pela editora Guerra e Paz. Sobre o livro, Saramago reagiu positivamente, dizendo que se trata de um trabalho honesto, sério e sem especulações gratuitas; entretanto, parece ter a obra alguns lapsos que o próprio escritor, na mesma nota de reação ao livro esclarece: "Aspectos desconhecidos, não os encontrei. Por exemplo, da morte de meu irmão Francisco falei nos Cadernos de Lanzarote. E não é certo que uma produtora norte-americana me tenha feito uma oferta milionária pela adaptação do Memorial do Convento. Recebi realmente uma proposta da brasileira  TV Globo para negociar a cessão de direitos para uma série. A minha resposta foi que não queria ver a cara das minhas personagens."

Da publicação que em breve chega ao Brasil pelo grupo editorial LeYa, deixamos aos leitores um excerto: o capítulo 7 que se refere ao veto do governo português ao romance O Evangelho segundo Jesus Cristo, um dos episódios mais conturbados na biografia do escritor português depois do saneamento no Jornal Diário de Notícias.

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O EVANGELHO HERÉTICO

O início da década de 1990 parecia estar bem encaminhado para Saramago. Preparava O Evangelho segundo Jesus Cristo. A ópera Blimunda, que Azio Corghi adaptara de Memorial do convento, estreara sob aclamação generalizada no renomado Teatro alla Scala (Milçao), em 20 de maio de 1990. Contudo, mais para o fim desse ano, o escritor sofreu um deslocamento de retina em Roma e acabou por ser submetido a uma operação em meio a temores de perda da visão.

Passado o susto, voltaria ao livro. A ideia sob a costumeira forma inicial de título ocorrera-lhe em 1987, quando, numa das então frequentes visitas a Sevilha para se encontrar com Pilar del Río, julgou ver numa banca de jornais o título "O Evangelho segundo Jesus Cristo". Essa ilusão de ótica ficaria germinando na mente do autor e dois anos depois ele escreveria estas anotações em um de seus cadernos:

"Bolonha, 12 de abril de 1989, de manhã, pinacoteca, evidência súbita, iluminação, deslumbramento quase, a história encontrou os seus pontos de apoio e ligação. [...] Jesus tem um encontro com Jeová que lhe revelará o futuro, não apenas o seu próprio, mas também o da religião que será fundada na morte necessária do mártir. Jesus recusa esse papel e foge. A história a contar será então a de uma longa mais não interminável fuga. Os milagres serão operados por Jeová à frente de Jesus para o forçar a aceitar a proposta." [Entrevista concedida ao Expresso, 2 de novembro de 1991]

Entretanto, viria a etapa da documentação e da leitura cuidadosa dos materiais necessários à efetivação da obra. Segundo o escritor, a base central assentou-se no relacionamento intertextual com os evangelhos, o Novo Testamento e o Velho Testamento. Partiria, portanto, mais de uma nua reinterpretação criativa da Bíblia do que de uma rede erudita de palimpsestos em que caberiam desde dezenas de "evangelhos apócrifos" a Renan; desde Papini a A última tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis, e tantos outros. Ao lado do essencial suporte bíblico, Saramago desenvolveu uma investigação sobre "a época, a história do tempo, o modo de viver, os costumes, a habitação, os trajos, a comida, isso tudo, sobre que ia assentar o meu edifício ficcional". Lê então livros como  La sinagoga cristiana, de Josep Terrens, ou Jerusalém no tempo de Jesus, de Joachim Jeremias. Consulta amigos judeus versados nessas questões, como Sam Lévy. Vai mesmo a Israel. Estuda materiais iconográficos como certas gravuras de Dürer, que lhe servirão como fonte de inspiração para a abertura da obra. O resto foi feito pela imaginação criadora do ficcionista.

O Evangelho segundo Jesus Cristo acabaria por ser concluído em agosto de 1991, depois de Saramago e a esposa se instalarem dois meses numa casa de campo de alguns amigos, perto do rio Lisandro, junto da Ericeira. Nesse retiro, o escritor encontrou a paz necessária para escrever boa parte do livro.

E que livro era! O espectro da heresia perpassava-o de um lado a outro, desconstruindo as verdades canonizadas por sucessivos concílios com base nos evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João. E fazia isso em episódios e trechos inesquecíveis, de que a travessia do lago Tiberíades em busca onde Deus, o Diabo, e Jesus se juntam e a litania do futuro de todos os mártires do cristianismo talvez sejam os mais paradigmáticos. Eis excertos:

"Quero saber mais, disse Jesus quase com violência, como se quisesse afastar a imagem que de si mesmo representara, suspenso duma cruz, ensanguentado, morto, Quero saber como chegarão as pessoas a crer em mim e a seguir-me, Pois bem, edificar-se-á a assembleia de que te falei, mas os caboucos dela, para ficarem bem firmes, haverão de ser cavados na carne, e os seus alicerces compostos de um cimento de renúncias, lágrimas, dores, torturas, de todas as mortes imagináveis hoje e outras que só no futuro serão conhecidas, Finalmente, estás a ser claro e direto, continua, Para começar por quem tu conheces e amas, o pescador Simão, a quem chamarás Pedro, será, como tu, crucificado, mas de cabeça para baixo, crucificado também há de ser André, numa cruz em forma de X, ao filho de Zebedeu, aquele que se chama Tiago, degolá-lo-ão [...]. Conta, quero saber tudo. Deus suspirou, e no tom monocórdico de quem preferiu adormecer a piedade e a misericórdia, começou a ladainha, por ordem alfabética para evitar melindres de precedências, Adalberto de Praga, morto com um espontão de sete pontas, Adriano, morto à martelada sobre uma bigorna, Afra de Ausburgo, morta na fogueira, pendurado pelos pés, Agapito de Preneste, morto na fogueira, pendurado pelos pés, Agrícola de Bolonha, morto crucificado e espetado com cravo [...], Hermenegildo, Sabino de Assis, lapidado, Saturnino de Toulouse, arrastado por um touro, Sebastião, flechas [...] Venâncio de Camerino, degolado, Vicente de Saragoça, mó e grelha com puas, Virgílio de Trento, outro morto por tamancos, Vital de Ravena, lança, Vítor, decapitado, Vítor de Marselha, degolado, Vitória de Roma, morta depois de ter a língua arrancada, Wilgeforte, ou Liberata, ou Eutrópia, virgem, barbuda, crucificada, e outros, outros, outros, idem, idem, idem, basta."

E a litania continuaria nas cruzadas guerreiras, nas guerras religiosas entre os próprios cristãos, na Inquisição e em todos os morticínios da carne nos conventos e mosteiros até culminar em "Era preciso ser Deus para gostar tanto de sangue". Era a negação de toda uma cultura judaico-cristã que se transmudara de contrapoder em instituição dominante, repressora e autorreferencial contra a própria humanidade.

Porém, isso já estava incorporado na parte mais secundária da narrativa e era sobretudo na intriga ficcional da vida anterior de Jesus que começavam a germinar todas as heresias e heterodoxias. A criança nascera da carne de Maria e de José. José era um criminoso por omissão, um cúmplice da matança dos nascituros ordenada pelo rei Herodes, às voltas com a culpa e o remorso devido a não ter feito o mínimo gesto para avisar as outras famílias e só ter se preocupado com os seus. Jesus herdara a culpabilidade paterna, era em parte educado pelo Diabo disfarçado e vivia maritalmente com Maria de Magdala (Maria Madalena). Os milagres vinham truncados e o da ressurreição de Lázaro fracassara intencionalmente. E Jesus estava dominado por um Deus autofagicamente comprometido com a busca do poder infinito e com ele mantinha uma relação bastante atormentada e conflituosa.

Nem todas as possibilidades ficcionais da vida de Jesus eram propriamente inéditas, uma vez que, por exemplo, a rejeição da imaculada concepção ou a sustentação da relação sexual entre Jesus e Maria Madalena aparecem já em alguns dos evangelhos apócrifos, mas o conjunto ficcional era sem dúvida original, poderoso e suficientemente polêmico para desatar reações de extremo desagrado em setores mais conservadores do catolicismo.

Saramago sabia que O Evangelho segundo Jesus Cristo teria esse efeito e acertou no que iria acontecer até certa medida, pois previa que Igreja portuguesa como instituição não reagiria, que um ou outro dignatário mais elevado arremeteria contra a obra e os padres de expressão secundária o fulminariam por intermédio da imprensa católica. E assim se deu. A Igreja ignorou oficialmente o livro. Na alta hierarquia, o arcebispo de Braga proferiria um homilia destemperada contra o "escritor português, ateu confesso e comunista impenitente" que teria feito um "livro blasfemo", desrespeitando a identidade do povo português. Em jornais regionais, como A voz de Trás-os-Montes, escreviam-se passagens do seguinte teor: "Por dever de ofício, tive de ler um livreco pestilento e blasfemo onde o enfunado autor se enterra até as orelhas nas escorrências que destila como falsário, aleivoso e cínico!". De fato, essas reações lhe eram indiferentes. Ele já era mais do que conhecido e consagrado para precisar se utilizar de ficções provocadoras para se promover ou para responder a tais ataques.

Aliás, nem todas a reações adversas dos meios católicos tinham propriamente esse tom ofensivo e quase de excomunhão. Alguns raros sacerdotes progressistas chegariam mesmo a considerar que a obra não era necessariamente herética; ousara dar voz a quem não tinha e alertava para a necessidade de a Igreja reverter o sacrifício das pessoas às estruturas, devendo ser respeitada como perspectiva ficcional de não crente.

Nem o próprio Saramago refutaria absolutamente tudo na tradição e atualidade cristãs. Além de certas expressões artísticas e musicais, havia também figuras de grande humanidade como São Francisco de Assis, acerca de quem fizera uma peça de teatro, e de rara riqueza intelectual, como o Padre António Vieira, a respeito do qual tinha em preparação uma biografia romanceada que não chegaria nunca a ser concluída... E, por certo, os homens e as mulheres que, sob a influência da teologia da libertação, por boa parte da América Latina lutam ao lado dos camponeses pobres e sem-terra também lhe mereceriam simpatia.

O que Saramago não previra e bem poucos esperariam em uma sociedade que atingira um mínima maturidade democrática era que uma obra de ficção fosse alvo de censura decretada a partir do próprio governo do país.

O VETO

Com efeito, tal anomalia surgiu inesperadamente pela decisão da Secretaria de Estado da Cultura de suprimir O Evangelho segundo Jesus Cristo de uma lista de livros propostos por instituições culturais como o PEN Club Português e a Seção Portuguesa da Associação Internacional de Críticos Literários para o Prêmio Literário Europeu, criado havia pouco pela própria CEE. O principal agente dessa exclusão foi o subsecretário Sousa Lara, que a justificou por ser a obra "profundamente polêmica, pois ataca princípios cristãos e, portanto, longe de unir os Portugueses, desunia-os naquilo que é seu patrimônio espiritual". De início, contou visivelmente com o apoio de todo o governo e da esmagadora maioria do PSD.

Segundo Saramago, não era a primeira vez que Sousa Lara o discriminava. Em entrevista concedida ao Público de 10 de maio de 1992, ele esclareceria:

"Na relação do senhor Sousa Lara comigo, este não é o primeiro episódio. Já este ano, o que me leva a crer que tudo isto tem origem no Evangelho segundo Jesus Cristo, foi enviado, penso que em fevereiro, um pedido de subsídio para que eu me deslocasse a Paris, à Expolangues, e o senhor subsecretário de Estado não fez censura porque não tomou decisão alguma: exerceu o veto de gaveta. Mais grave, porém: recentemente, em abril, a Universidade francesa de Clermont-Ferrant convidou-me para lá ir. E mais uma vez foi feito, através do Instituto Português do Livro e da Leitura, o pedido de apoio para a viagem. O IPLL limitou-se a passar o pedido a quem tem o poder de decidir, mais uma vez ao senhor Sousa Lara. Que respondeu que não haveria subsídio para mim e que ele sugeria outro escritor. Sei o nome do escritor alternativo, que não tem nada a ver com o assunto com certeza. Mas a Universidade de Clermont-Ferrant respondeu: 'Está muito bem, mas quem nós queremos cá é o senhor Saramago'. E eu lá fui, o Estado português não gastou um tostão. Portanto, o veto para o Prêmio Literário Europeu é o terceiro caso de censura que sofro este ano."

Contudo, agora tratava-se de censura de caráter inquisitório, tornada pública e publicamente justificada a partir do seio do governo em um gesto que fazia lembrar o caso tão polêmico da perseguição dos fundamentalistas islâmicos contra Os versos satânicos de Salman Rushdie, pois trazia em si a mesma essência de ato estatal contra a liberdade de criação artística em nome de valores religiosos.

Entre fins de abril e junho de 1992, o assunto ganhou contornos de escândalo nacional e rumou até para o exterior. Foi debatido em pleno Parlamento. Provocou tensões entre o governo e a presidência da República. Chegou à política internacional e às mais altas instâncias comunitárias. Concitou o repúdio unânime dos meios culturais. Em 29 de abril, foi agendado para debate em pleno hemiciclo de São Bento, tendo o deputado socialista Jaime Gama declarado que "as razões invocadas para eliminar certas obras são inaceitáveis e ainda recentemente foram praticadas no Irã de Khomeini", e Santana Lopes, então secretário de Estado da Cultura, retorquido com evasivas desfocadas do eixo do problema, como a necessidade de separar Estado e sociedade civil em certas atribuições culturais, e a acusação contra a presidência da República de ingerências no seu campo de atuação por Maria Barroso estar alinhada como Saramago e outros artistas na Frente Nacional para a Defesa da Cultura. Em meados de maio, a exclusão de O Evangelho segundo Jesus Cristo motivou uma carta de Jack Lang, ministro da Cultura e da Educação Nacional francês, na qual afirmou que "não hesitamos em considerar este gesto como um ato inaceitável que atinge um dos maiores escritores do nosso tempo". E própria presidência do Parlamento europeu aprontou um documento: "[...] declara-se inaceitável que um prêmio literário europeu possa ser afetado por uma discriminação que viola o princípio da igualdade em matéria de religião e ideologia". Entretanto, os escritores portugueses unificaram-se amplamente em um protesto que reuniu desde Urbano Tavares Rodrigues a David Mourão-Ferreira, de José Cardoso Pires à própria Agustina Bessa-Luís, cujos compromissos com o cavaquismo eram evidentes. Em sessão de desagravo na Sociedade Portuguesa de Escritores, Natália Correia resumia a essência do processo à luta contra o "espírito censório".

Enquanto isso, outros escritores indicados para o prêmio em questão retiraram suas obras do concurso em solidariedade a Saramago. Pedro Tamen retirou Tábua de matérias e Fiama Pais Brandão fez o mesmo com Obra breve. Só Agustina, cujo Vale Abraão substituiria a obra vetada, se manteve.

Com a evolução do escândalo, Sousa Lara contaria apenas com o apoio sólido dos setores clericais tradicionalistas e da imprensa da extrema direita. O arcebispo de Braga e muitos outros padres declararam-no expressamente. Jornais como O Diabo aproveitaram o ensejo para desencadear uma campanha contra Saramago a pretexto do episódio dos saneamentos no Diário de Notícias em 1975. Por seu lado, o governo e o PSD foram forçados a adaptar um perfil de baixa intensidade ante o coro dilatado de protestos no país e no exterior. Santana Lopes deu instruções para recomeçar todo o processo de seleção do candidato português ao Prêmio Literário Europeu e retirou de Sousa Lara os poderes do assunto. O PSD apoio-se em subterfúgios para deixar esmorecer a polêmica do ato censório; houve setores mais truculentos que homenagearam Sousa Lara (em 1993, a maioria "laranja" da Câmara Municipal de Mafra recusou uma proposta para atribuir a medalha de ouro do concelho ao escritor); e encontrou em Duarte Lima e Pacheco Pereira vozes contrárias ao ato inquisitório de Sousa Lara.

Contudo, José Saramago não aceitaria que O Evangelho segundo Jesus Cristo voltasse a ser inscrito no concurso ao Prêmio Literário Europeu, conforme o governo agora aceitara na sequência da reviravolta inesperada tida pelo seu ato censório. Em carta enviada a Rafael Conte, presidente do júri internacional desse prêmio, o escritor foi peremptório:

"Não aceito esta decisão, em primeiro lugar porque nenhuma autoridade se pode arrogar o direito, sejam quais forem os fins e os motivos, de se servir duma obra contra a vontade do seu autor, e em segundo lugar porque, não sendo deontologia, para mim, uma palavra vã, me recuso absolutamente a ocupar um lugar que antes esteve ocupado por outro colega de profissão, independentemente das razões por que lá o colocaram." [Carta datada de 8 de junho de 1992]

Pelo sim, pelo não, essa diferença particular entre Saramago e o PSD só seria dada por definitivamente encerrada doze anos depois. Durão Barroso, ministro dos Negócios Estrangeiros do governo cavaquista que o vetara e primeiro-ministro à época da reconciliação, escrevera no Expresso de 3 de abril de 2004 que, "na sua escala de valores, a arte e a cultura se situam num plano superior ao de qualquer contingência ou cálculo político-partidário. [...] Por isso mesmo não me revejo em processos que, no passado, discriminaram Saramago por causa de algumas das suas opções individuais". Em almoço realizado doze dias depois entre o escritor e Durão Barroso o caso ficava selado. Enfim. tudo teria sido evitado se a Secretaria de Estado da Cultura tivesse se limitado a dar o aval administrativo que constava do espírito do processo de seleção de candidatos ao Prêmio Literário Europeu, o que aliás fizera no ano anterior em relação a História do cerco de Lisboa do mesmo Saramago, ou, olhando para o passado, aceitasse a lição de Krus Abecasis por decisão da outorga do Prêmio Cidade de Lisboa a Levantado do chão em 1981.

O "EXÍLIO" EM LANZAROTE

Embora O Evangelho segundo Jesus Cristo tivesse valido a Saramago o único prêmio literário português para uma obra particular que faltava a seu palmarès e o livro confirmasse a invejável penetração no mercado nacional e até internacional, o escritor ficara muito desgastado. Desabafou então que qualquer dia partiria para fora do país e a imprensa começou a circular notícias sobre essa partida como uma resposta ao ato censório do governo. Houve mesmo quem desse contornos sensacionalistas ao caso, fazendo paralelo exagerado entre o exílio forçado de Salman Rushdie e a possível partida de Saramago. Como se conhece bem, a verdade é que nem a conquista do Grande Prêmio de Romance e Novela da APE, cuja sombra o perseguia havia uma década, nem os mais de 100 mil exemplares de O Evangelho segundo Jesus Cristo vendidos em Portugal e outros 40 mil no Brasil foram motivação suficiente para permanecer numa terra cujo o governo o tratara de maneira tão censória. Assim, o escritor e Pilar del Río mudaram-se de Lisboa para Lanzarote, nas Ilhas Canárias.

A rigor, Saramago faria de certo modo uma eventual relação direta de causa e efeito entre o ato de Sousa Lara e a partida para território espanhol. Em uma entrevista à revista Visão de 25 de março de 1993, quando vivia em Lanzarote havia cerca de um mês, o escritor esclareceu: "Os meus cunhados vivem na ilha há anos, e em 1991, viemos vê-los. Gostamos logo muito. Depois passamos cá um fim de ano e, ao voltarmos a Lisboa, diz-me a Pilar: e se fizéssemos uma casa em Lanzarote? Respondi: está doida! Mas perco sempre. Iam assim as coisas quando aconteceu o Lara". Mais tarde, desmistificaria a ideia de que seria uma espécie de "exílio político":

"Dizer, como tem aparecido em certa imprensa pouco cuidadosa da verdade, que eu sou ou me considero um 'exilado político' é simplesmente uma estupidez de que não sou responsável. Comparar-me a Salman Rushdie, como também se tem feito, é outra ainda maior estupidez. As palavras devem ser respeitadas, tanto quanto a verdade das situações. Dito isto, é também verdade que não estaria a viver em Lanzarote se não tivesse vindo ao mundo um sujeito Sousa Lara e não tivesse Portugal um governo, todo ele, capaz de dar cobertura cobarde ao seu vergonhoso ato de censura. Nunca havia pensado viver fora de Portugal".

Portanto, Saramago seria um exilado voluntário e jamais cortaria as amarras com Portugal, aonde voltaria recorrentemente e onde manteve sua casa lisboeta da rua dos Ferreiros, próximo da Estrela.

Após comprar um terreno junto ao da casa do cunhado e de mandar fazer lá uma casa térrea com um mirante, Saramago instalou-se com a esposa em Tías, perto da capital da Ilha Canária de Lanzarote e com uma ótima vista para o oceano, em fevereiro de 1993. Algum tempo depois se tornaria proprietário de uma outra parcela do terreno para não correr o risco de perder parte da excelente vista. Afinal, ser um escritor de sucesso permitia tais gastos. "Aquilo que me deu para respirar foi o Memorial, recebido de braços abertos e mais tarde, a repercussão internacional, as traduções", dizia o escritor.

Enfim, deixemos para trás pormenores e centremos a atenção nos projetos literários que Saramago tinha em mãos desde que se instalara em Lanzarote. Para tal, e deixando de lado a peça de teatro In Nomine Dei, que parece ter sido concluída antes da mudança, o diário dos Cadernos de Lanzarote é fonte indispensável. Um era de pouca monta e foi terminado rapidamente. Era o "Conto burocrático do capitão do Porto e do diretor da alfândega". Outro tinha a ver com a possibilidade de escrever para uma série que passaria na RTP (Rádio e Televisão de Portugal), uma história sobre dom João II, cuja "ideia [...] seria utilizar a feitura do Retábulo de São Vicente, que se situa em cheio na época, como uma das chaves da narrativa. [...] Contra a iconografia oficial, neste malogrado 'D. João II', o homem do chapeirão iria ser D. Duarte e o infante D. Henrique o cavaleiro de joelho em terra que aparece no chamado 'painel do arcebispo'... E o rosto do santo seria retocado, depois de 1491, para ficar como retrato do infante D. Afonso...". Germinava algo que seria cortado pela raiz pelo fato de a RTP decidir não encomendar o trabalho a Saramago, ao que parece devido à oposição de um comandante da Marinha que chefiou a Comissão dos Descobrimentos e teria convidado a escritora Lídia Jorge para essa tarefa sobre dom João II, declarando-lhe não querer Saramago por não estar interessado em visões marxistas da História.

Um terceiro projeto era Ensaio sobre a cegueira, e é possível acompanhar um pouco o seu desenvolvimento: "[...] como meter no relato personagens que durem o dilatadíssimo lapso de tempo narrativo que vou precisar?" (Anotação de 18 de abril de 1993); "Dificuldade resolvida. Não é preciso que as personagens do Ensaio sobre a cegueira tenham de ir nascendo cegas, uma após outra, até substituírem, por completo, as que têm visão: podem cegar em qualquer momento. Desta maneira fica encurtado o tempo narrativo" (21 de junho de 1993); "Escrevi as primeiras linhas do Ensaio sobre a cegueira" (2 de agosto de 1993); "Decidi que não haverá nomes próprios no 'Ensaio'" (15 de agosto de 1993). E assim por diante avançaria essa obra que apenas teria fim dois anos depois, em agosto de 1995.

Em viagens pelo mundo motivadas por conferências, prêmios literários, homenagens, visitas de variadas pessoas à nova casa e longas caminhadas na ilha, corria a vida de Saramago em Lanzarote. Antes do lançamento de Ensaio sobre a cegueira, os dois primeiros anos no retiro canário foram entrecortados por uma visita a Londres para receber o Prêmio Literário do The Independent para o melhor romance traduzido na Inglaterra em 1992 (no caso, O ano da morte de Ricardo Reis), outra a Münster para assistir à estreia da ópera Divara, de seu In Nomine Dei, e diversas viagens a Portugal e a outros países. Na casa de Tías, acolheu familiares, camaradas, curiosos da obra, jornalistas e amigos. Lá recebeu copiosa correspondência de admiradores e depreciadores, e amostras múltiplas da consagração de sua obra no interior das universidades portuguesas e estrangeiras, sendo a tese de doutoramento por Yale do pesquisador brasileiro Horácio Costa intitulada "José Saramago. O período formativo" a mais relevante delas.

E, nas suas explorações a pé pelas montanhas, pelas crateras e pela geografia quase lunar da ilha, na montaña Blanca ou na montaña del Fuego, emergia-lhe uma questão: "[...] será Lanzarote, nesta altura da vida, a Azinhaga recuperada? As minhas deambulações inquietas pelos caminhos da ilha, com o seu quê de obsessivo, não serão repetições daquela ansiosa procura (de quê?) que me levava a percorrer por dentro as marachas do Almonda, os olivais desertos e silenciosos ao entardecer, o labirinto do Paúl do Boquilobo?". Estaria ante alguma espécie de recomeço? Teria a paisagem árida, vulcânica e dos confins do mundo que ele encontrava pelas caminhadas do exílio voluntário, e a propósito desse mesmo exílio, influência na sua obra, que agora começaria a ter perfis dos década de 1980?


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