Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

Por Pedro Fernandes





Publicado em 1995, Ensaio sobre a cegueira nasceu de uma feliz inquietação de José Saramago: e se, de uma hora para outra, perdêssemos a visão? A pergunta aparentemente simples que talvez tenha sido pensada por qualquer pessoa não é, entretanto, mania que vem de passagem de alguém que se nota, de uma hora para outra, ensimesmado como determinadas possibilidades. Diante dela, o escritor português desenvolveu um romance, que interessado em alcançar ou sondar uma resposta, penetra as fronteiras dos múltiplos sentidos suscitados pela condição de estar cego e, por conseguinte, os sentidos implicados na ideia de visão. É assim que este se mostra texto especulativo, que se constrói em círculos, examinando, apurando atentamente as várias possibilidades de resposta para uma pergunta ou a conformação de uma tese: “Penso que não cegámos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem” ― retomando uma das conclusões célebres das várias que compõem o andamento da narração.

Reiteradas vezes, o seu autor disse ser um homem de ideias e na impossibilidade de se realizar como romancista, realiza-se como ensaísta: faz ensaios com pessoas dentro. Essa perspectiva recupera a obra literária não somente como objeto de entretenimento, mas de provocação sobre determinada condição, tal como se desenvolve no romance ora lido ou sobre uma situação histórica como bem ficou demonstrado em romances como Levantado do chão Memorial do convento, ou ainda sobre o comportamento de determinados discursos na organização da comunidade humana (O evangelho segundo Jesus Cristo ou Ensaio sobre a lucidez). De modo que, ninguém sairá como entrou num dos romances saramaguianos. A inquietação capaz de fomentar a escrita de um texto ― algo assemelhado à inquietação de um pesquisador diante de um tema de dissertação ou tese ― da forma como é construída pelo romancista coloca o leitor em situação de alerta; e a pergunta outra vez volta: e se, de uma hora para outra, perdêssemos a visão?

O escritor elege então alguns habitantes, uma cidade imaginária, já que desterritorializada pela ausência de qualificativos ou de um nome próprio que a designe, e coloca-os imersos nessa condição: a de, numa hora para outra, ficarem cegos. São figuras aleatórias (que também desconstrói a ideia de fronteira entre grupos humanos) alinhavadas apenas por situações casuais que não fosse a cegueira que vai atingir um a um nunca se imaginariam-se ligados uns aos outros. Fica demonstrado por essa caracterização certa denúncia do romancista acerca do acelerado processo de individualização pelo qual passa a comunidade humana desde o advento do capital e necessária subversão dessa condição a fim de não perecermos enquanto humanidade.

A epidemia força, como em situações dessa natureza, o Estado a iniciar um severo regime de quarentena. A população é, a princípio, levada para um sanatório desativado a título de cumprirem o isolamento e é sobre um deles que recai a atenção do narrador. A atitude sempre esperada de Estado e de organizações de saúde quando se dão contas de estar diante de uma epidemia é logo transformada noutra experiência: capaz de recuperar ipsis literis alguns dos instantes mais tristes de nossa história, um totalitarismo. À força, sob um regime de vigilância e violência, esses indivíduos terão de “aprender” novamente aquilo que já um dia serviu para os colocar frente a outras espécies: a capacidade de se articular uns com os outros comunitariamente.

Tal processo não seria possível sem figura de um líder. Se na atual conjuntura, o mundo cada vez mais planifica-se pela impossibilidade da aparição de alguém com o carisma suficiente de congregar pessoas em torno de um determinado ideal, o romancista elege, não por acaso, a figura de uma mulher que, entre outras funções, alcançará a tarefa de condução do grupo de cegos pelos labirintos desse mal branco. Ao dizer isso, reforçamos duas coisas: (a) não é a cegueira tratada neste Ensaio uma cegueira comum; (b) poderá residir no feminino a possibilidade de reverter a posição do mundo até então criado à força e semelhança da razão bruta do homem. Há nessa última constatação, a apresentação de um pensamento ensaiado pelo próprio escritor cujo ponto é de alcançar outra possibilidade de ser e estar no mundo. E para já. Ou estaremos condenados à barbárie.

Todo itinerário dentro e fora do manicômio reforçam que, se não estamos loucos, não precisaremos de cegar no sentido clínico do termo para ficarmos cegos. Já estamos cegos. E a trajetória a ser alcançada pelos que foram tomados pelo mal branco é de reaprenderem a ver, isto é, dando movimento à expressão que epigrafa o romance, “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Um conselho que seria uma espécie de, como nos antigos contos ou parábolas, educação desenvolvida pelo caráter exemplar da narrativa. Aqui está uma das capacidades mais admiráveis, penso, da obra saramaguiana: dizer-nos o mundo e fomentar-nos a intervenção, mas sem prescrições, determinações ou panfletismo.

A mulher do médico é o novo Ulisses nessa odisseia sem deuses e tomada pela catástrofe criada pela própria comunidade humana. Não há, nesse processo, qualquer força que a não venha do próprio homem que se mova em prol de outra maneira de habitar o mundo. Na atual conjuntura é insuficiente ver o mundo. Indiretamente Saramago cobra do leitor a responsabilidade de, em posse da certeza de que, estamos, de fato cegos possamos alcançar a capacidade de intervir sobre o mundo. Ensaio sobre a cegueira é um apelo a que os indivíduos saiam da apatia e do conforto alcançado por esse modo de vida que à primeira vista condiz com todo anseio de liberdade lutado noutro tempo, mas que esconde perigosamente uma alienação mais mordaz dos que os regimes de cerceamento do direito de ir e vir.

A cegueira branca é uma poderosa metáfora, assim como é essa epidemia, sobre o que se encobre pelo véu das ideologias correntes. A mulher do médico, a líder ou condutora no processo de auto-iluminação, porque dentre os tomados pelo mar de leite, é a única que não cega não se configura apenas como a capaz de conduzir a comunidade na forma de rasgar o aparente para nos dizer aquilo que se esconde. Ela é a que, ao modo de um novo Cristo, vem dizer sobre a necessidade de recuperarmos a capacidade comunitária e criarmos uma posição crítica sobre a realidade. A desconfiar sempre pelo lugar de saber sobre o porquê das coisas ― coisa rara para uma comunidade que só aprendeu a absorver a existência e vivê-la desinteressadamente. Viver é um perigo perigoso, já nos alerta Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas. Viver é embate entre contemplar e desassossegar-se e é preferível sempre a segunda posição ou não sentiremos a força de estarmos vivos.

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