A jangada de pedra, de José Saramago


Por Pedro Fernandes



A jangada de pedra é um romance que pode ser visto por ângulos diversos. A capacidade narrativa de José Saramago manifesta em sua fluidez expressiva faz de cada uma de suas obras uma experiência literária genial, mas talvez o mais importante, é que o seu lugar de pessoa sempre sobressai o lugar do escritor e se faz notar a mensagem política e humana que nos deixa esta metáfora da união entre a Europa e a América Latina, um dos vieses principais de leitura deste romance ora comentado.

A Península Ibérica se aparta do resto da Europa. É como se a Saramago gostasse de jogar com a realidade, embora a realidade seja um dos aspectos principais deste romance, assim como é, para a escrita de outras obras como Levantado do chão ou Memorial do convento, para citar duas delas. Mesmo que o fantástico aqui se interponha com maior maestria que nas outras obras – basta assinalar a grande imagem que é, do acaso, toda uma parte do continente partir-se e sair vagando pelo Oceano Atlântico, fora outros episódios irreais  que assinalam a narrativa – sua intenção é chegar mais próximo à realidade e expressá-la com maior força, mediante o recurso de elaborar novas temáticas ou os modos como faz para tratá-las no âmbito do romance.

É sabido que a cosmovisão saramaguiana é assinalada por um enfoque humanista de aguçada sensibilidade social. E desde sempre sua preocupação é refletir esse eixo do que diríamos ser estranho ao sujeito comum, porque está imerso numa grande caldeira de ideologia e dogmas. Escrito no auge das discussões sobre a entrada de Portugal para a União Européia, Saramago aproxima-se da questão por outro viés que dispensa a questão econômica e política, certamente o discurso mais levantado naquela ocasião, para propor um debate cultural de elevado nível, diga-se, pela compreensão nem sempre bem recebida de que, Portugal e Espanha melhor ganhariam se, ao invés de juntarem-se a um continente que sempre os excluiu, juntassem-se àqueles que um dia foi de seu interesse territorial e econômico.

A separação da Península do resto da Europa a vaguear pelo Atlântica é alegoria de um Portugal decante, abandonado à sua própria história, igualmente vagueando à deriva; é a evidência de um país desorientado de sua condição, uma espécie de jangada solta e não identificável com o tema do europeísmo.

A jangada de pedra é, portanto, uma crítica sócio-política de extrema importância numa redefinição do debate sobre aquela comunidade econômica que surgia. Não conseguiu remodelar o curso da questão (a literatura, aliás, não se presta a isso) mas deixou uma perspectiva que, dentro de seu tempo, ganhará as devidas proporções necessárias. Ou se não, avança para uma compreensão universal sobre as relações entre as nações, hoje muito próximas porque têm seus interesses escusos, amanhã muito distantes porque não já depositam qualquer melhor porvir.

Trata-se de um romance cujo campo de reflexão não está apenas preso à questão da União Européia. A onipresença dos do Norte nos assuntos geopolíticos e econômicos está também muito bem representada na relação mesquinha com que os Estados Unidos têm tratado de se relacionar com o resto do mundo desde que ascenderam ao status propriamente definido de potência. Já sobre o imbróglio Europa-América, Saramago é crítico em reafirmar sobre a responsabilidade do continente sobre as desigualdades sociais deixadas de herança para os povos colonizados.

Tudo está neste itinerário de quebra da Península com o a Europa e na viagem empreendida pelos cinco personagens – Pedro Orce, Joaquim Sassa, José Anaiço, Joana Carda e Maria Guavaira. É casualidade que os une. Mas, o que irão aprender no grande percurso que fazem junto com a balsa de pedra é algo cujo desfecho é entregue para a eternidade. Todas essas personagens passam por um exercício de iniciação, de busca interior, de renovação das relações entre eles. Assim como as nações não conseguem estabelecer o diálogo comunitário que devem estabelecer, o homem tem se afastado cada vez mais do outro e da coletividade – eis outra reflexão constante em José Saramago.

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