Notas sobre o encontro com O dom, de Jorge Reis-Sá

Por Pedro Fernandes




A primeira vez que encontrei o livro do Jorge Reis-Sá estava numa das minhas visitas à livraria em busca de novos nomes da literatura portuguesa contemporânea. Tem sido, assim, desde quando leitor apaixonado pela obra de José Saramago, decidi-me não apenas ficar restrito à obra do Prêmio Nobel de Literatura. Pode ser um gesto de curiosidade do pesquisador, sempre atento a alguma novidade (outro possível Nobel de língua portuguesa) ou ainda certo esforço por encontrar, depois de ter lido grande parte da obra saramaguiana, outro nome da sua envergadura.

Até agora não encontrei. É bem verdade que enredo-me (e mais adiante talvez mais ainda tão logo venha me adequar à nova forma) por António Lobo Antunes, outro que, merece, sem pestanejar receber o galardão mais importante na vida de um escritor. Mas, tenho encontrado surpresas agradáveis, além desse autor. Jorge Reis-Sá é uma delas. Ao topar com este O dom fiz o teste de reconhecimento do leitor iniciante: ler a orelha do livro, alguma passagem aleatória do texto. Mas, pelo dinheiro curto, não me senti inclinado a levar a livro comigo. Mais adiante topei com Todos dias. Fiz os mesmos procedimentos e já em casa, satisfeito pela descoberta, fui à cata de mais informações sobre o português. Onde? Na web como todos fazemos hoje em dia. E tive grata surpresa novamente ao dar de cara com um jovem escritor, mas já com farta obra, em trânsito por diversos gêneros, da poesia, passando pela crônica, ao romance, dos quais enumerei alguns títulos para uma breve nota sobre sua biografia editada neste blog em 2009 (ver link abaixo): Biologia do homem, No cimo das águas, Livro de estimação, Vou para casa, Por ser preciso, Cosmorama, Todos os dias, Terra. Logo refiz minha simpatia por sua obra.

Na primeira ocasião de retorno à livraria, adquiri O dom, editado no Brasil pelo Grupo Editorial Record. Todos os dias ficaria para uma outra oportunidade. Li-o freneticamente em duas tardes. O que me levou à escolha do primeiro título e não do segundo foi algo que já naquele primeiro encontro me chamou atenção: o fato de o enredo se aproximar e muito do Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago. Apesar de o autor, li depois várias entrevistas, dizer que se trata de uma mera coincidência, a coincidência de leitor crítico que teimo em ser não se finda em mera casualidade. Pode até ser que antes de Saramago Jorge tenha pensado num enredo da maneira como construiu e o fato de o conterrâneo logo mais à sua frente ter se dedicado a escrever um romance tomou-lhe o lugar devido. Mas, pode ser que estejamos diante de uma das influências mais recentes da literatura; geralmente o escritor bebe na fonte de textos já sedimentados pela história literária. Há vários pontos que convergem as duas obras, sejam eles intencionais ou não. Encontro nele, inclusive, cenas que me ecoam daquele livro do nobelista: como a da morte do estuprador a tesouradas; ou como da rebelião empreitada pelo Homem dos electrodomésticos.

Ao olhar para o enredo, apesar das aproximações em pontos como estes citados e muitos outros aspectos, em linhas gerais, creio, que se trate mesmo de certa coincidência; até porque as duas situações, tanto no Ensaio de Saramago como nesse livro do Reis-Sá, caminham para o mesmo rumo: o da degradação do atual modelo de sociedade e a reimplantação doutro modo de viver. Como no livro de Saramago, no livro do Jorge Reis-Sá as pessoas vão sendo afetadas por um mal inexplicável. Misto de ficção científica, de realismo mágico, as pessoas não cegam, mas se vão sendo transformadas em contas, dessas de colar. Apenas um homem e não uma mulher, a que passa ser chamado o do dom, não é afetado. Ele terá de fazer o trânsito dos de fora do shopping e os do shopping - os do shopping são os únicos não afetados pelo mal até certo ponto da narrativa.

A grande riqueza deste romance que o autor prefere chamar de um divertimento está na construção estrutural do texto, que é feita todo a base de depoimentos dos do interior do shopping; a começar pelo Homem do segundo andar que é quem presencia as primeiras transformações e passa por uma leva de personagens sem nome - outra marca idêntica ao Ensaio sobre a cegueira.

Apesar de Marcelo Moutinho na orelha do livro afirmar que nesse romance de Reis-Sá, que ele chama de misto de parábola, não tem nenhuma lição a tirar, discordo. Como parábola, há sim não lição, mas lições a se tirar. E uma delas trata-se da reflexão em torno de nós próprios e dos modelos de sociedade que vimos engendrando ao longo da história da humanidade. Um repensar acerca dos modos e das ideologias a que tem nos guiado. Um repensar acerca das fronteiras entre bem e mal. Essa me parece ser outra grande riqueza de O dom.

Agora, voltando às coincidências entre o jovem escritor e José Saramago penso que se é de influências que se faz a literatura (de boas influências, frise-se), Jorge Reis-Sá está no caminho certo.

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