A jangada de pedra, de George Sluizer
Por Pedro Fernandes
Foi só
depois de saber da adaptação de Ensaio
sobre a cegueira por Fernando Meirelles para o cinema para ter conhecimento de que, muito antes,
outro cineasta também havia se aventurado no exercício de transpor para a sétima arte
uma obra do José Saramago. Não lembro agora onde li, mas li que o escritor
português sempre se questionou, com certa curiosidade certamente, sobre como
seria ver na tela uma personagem que nem ele próprio, seu criador, tinha uma
visão bem-acabada. De fato, não é o caso de A
jangada de pedra que, como leitor, consigo ter uma imagem mais ou menos
elaborada das figuras engendradas pelo romance, mas a partir do romance de
1995, sim, o que sobressai na tessitura da narração, são vultos, expressões.
Se por um
lado isso até facilita a visualização do criador cinematográfico porque tem a
liberdade de moldar a personagem à maneira do que capta do romance e, talvez,
nunca lhe pese a acusação (fajuta, diga-se) de que a personagem no cinema não se
parece com a da narrativa, por outro, exige certo cuidado em também não se
divorciar do texto original; afinal, por mais diversa que seja a obra cinematográfica
baseada num romance, há elementos que não devem ser dispensados no processo de tradução
de um suporte para outro.
Bem, mas se,
ironicamente, Fernando Meirelles na leitura de Ensaio sobre a cegueira conseguiu enxergar melhor as personagens de
um romance em que o que elas são não têm uma consistência física que as
caracterize, George Sluizer, mesmo diante de personagens mais acabadas, digamos
assim, não conseguiu ter sensibilidade para enxergar dentro dos limites daquilo
que foi proposto por José Saramago. E tem aí, o leitor, já um primeiro ponto
negativo sobre o filme.
George
Sluizer é o diretor da adaptação de A
jangada de pedra. O filme, numa produção entre Portugal, Holanda e Espanha,
data de 2002. No currículo, o cineasta tem, bem elogiado pela crítica, outra
leitura da literatura para o ecrã, o policial O homem que queria saber que narra a história sobre um homem que
perde sua noiva numa viagem e, três anos depois, recebe o contato do raptor.
O romance de
José Saramago é de 1986 e tem como mote as discussões em torno da entrada de
Portugal e Espanha para a Comunidade Europeia. Como os textos de depois de O evangelho segundo Jesus Cristo, embora
este venha antes, claro está, é uma narrativa que segue um roteiro quase
ensaístico. Isto é, as situações e as personagens são representações, ou
motores, para o desenvolvimento da tese a ser defendida pelo romancista, que,
nesse caso, é o afastamento da Península Ibérica do centro europeu para reencontrar
lugares e culturas que melhor dizem sobre suas identidades, quais seja a África
e América. Tanto que, no impulso de um realismo fantástico (Carpentier epigrafa a
obra para o leitor não dizer que fantasiamos a leitura), o território dos dois
países parte-se e como uma placa tectônica (ou uma balsa de pedra) coloca-se em
deslocamento pelo Atlântico.
Pelo aspecto
do maravilhoso, qualquer produção de Hollywood transformaria o acontecimento
num grande feito com efeitos especiais de toda a sorte; no caso dessa produção,
os efeitos são limitados e o cineasta se concentra mais noutro percurso, que
também está no romance: o percurso das personagens. Afinal, se este é um
romance de viagem, o termo se desenvolve aqui por território diverso. E é nessa
ocasião, em que tudo que tinha para ser “do bom e do melhor” desanda.
Primeiro,
parece que o Sluizer quer levar para a tela o romance tal e qual e, no caso de
uma peça do gênero de Saramago, não é uma alternativa em nada aconselhável,
visto que (quem o leu conhece) o elemento melhor desenvolvido na obra é sempre
um narrador, instância que na tela do cinema se apaga para dar lugar à câmera. É
nessa altura que se exige do diretor a sensibilidade para ver como fazer isso
sem grandes perdas, sob pena de, se errar a mão na massa, todo o enredo cinematográfico
desanda. O grande defeito, talvez do filme, foi tentar, não apenas repetir o
romance na tela, mas querer que a complexidade da obra (inerente apenas à obra)
fosse alcançada pela narrativa cinematográfica. No final, se escapa um zelo com
o fio principal do texto original, o complexo se simplifica, mas de maneira que
a narrativa sai teatralizada, não convincente, como se ação e corpo estivessem
ocupadas em posições que não dialogam.
Se o cineasta
não conseguiu transformar a peça literária para a tela, também não conseguiu
transformar os atores nas personagens, tornadas espécies de arremedo ou
caricatura das figuras tão bem urdidas pela pena de Saramago. Como terá destacado
parte da crítica, e com a qual eu concordo, falta contextualização do
acontecimento de separação da Península
e falta uma coesão entre o homem que também passa por transformações ao longo
desse itinerário de desprendimento do continente. Ou seja, tudo aquilo que o
escritor faz com louvor, o cineasta desfaz; todo conteúdo literário é
tornado em mero protocolo filosófico e o resultado, é uma narrativa morosa, uma
construção cinematográfica muito pobre para um romance, que pediria muito mais.
Não foi
tempo perdido ver uma produção tão mesquinha, porque, de toda maneira, é essa
uma primeira adaptação de um romance de Saramago ao cinema; também fica a suspeita
de que, um resultado tão vazio, tenha decepcionado o escritor ao ponto de deixá-lo
receoso pela adaptação de sua obra para o cinema depois de A jangada de pedra. Essa resistência só será rompida quase dez anos
mais tarde com a autorização para que Fernando Meirelles adaptasse Ensaio sobre a cegueira que, continua
sendo a melhor leitura de uma obra saramaguiana pela sétima arte. Ao menos, o
brasileiro conseguiu produzir um texto que sublinha o valor estético da obra saramaguiana.
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