Os escritores perante o racismo


Por José Saramago

Imagem: F. E. Dean. 



Aí está o racismo, aqui estão os escritores. A questão parece bastante clara à simples vista: sendo o racismo uma expressão configuradora, e até agora inseparável, da espécie humana, com raízes tão antigas, provavelmente, como o dia em que se deu o primeiro encontro entre hominídeos ruivos e hominídeos negros; presumindo os escritores, por sua vez, de serem e merecerem ser os guias espirituais da nossa confusa humanidade, mesmo se, por ela lhes ter virado as costas, deixaram de estar em moda os maître-à-penser – a resposta a uma interpelação a eles dirigida seria, provavelmente, a redacção de um milésimo manifesto, de uma milésima condenação do racismo e da intolerância xenófoba, subscrita por todos os escritores deste nosso prolixo mundo, do primeiro ao último, se é que para eles também existe, algures, uma classificação por pontos, como a dos tenistas, que só precisa de olhar a tabela para saberem quanto valem.

Desgraçadamente, essas coisas não são tão simples, por muito abundante que tenha sido, nos últimos tempos, a produção de tais documentos condenatórios, que, deixando invariavelmente intacta e irremovida a causa do protesto, para pouco mais servem que robustecer a boa imagem que de nós próprios queremos ter. O problema não estará tanto em discutir sobre a necessidade de proclamar aos quatro ventos o que os escritores deveriam fazer contra o racismo e a xenofobia – estaríamos, neste caso, no domínio das puras obviedades –, mas em começar por averiguar se o racismo e a xenofobia, nas suas diversas expressões (desde a degenerescência violenta de aspirações nacionais histórica e culturalmente justificadas, até à ameaçadora ressurreição de doutrinas mais recentes de exclusão, perseguição e morte), não estarão a beneficiar dos silêncios da tribo literária, aproveitando o vazio resultante do alheamento social defendido por muitos escritores, em nome de critérios de liberdade e independência intelectual alegadamente superiores, que os levaram ao que chamam o seu compromisso pessoal exclusivo com a escrita e com a obra. Por outras palavras: trata-se de saber se os escritores de hoje, que, por indolência do espírito ou insuficiência da vontade, renunciaram a um papel interventivo, estarão decididos a manter-se indiferentes ao que está sucedendo à sua porta, vivendo por conta própria, tanto nas acções como nas omissões, a inumana “regra de ouro” de Ricardo Reis, aquele outro-eu classicizante de Fernando Pessoa que um dia escreveu, sem que a mão lhe tremesse e a face lhe corasse de vergonha: “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo...”.

Todas as causas do racismo foram já identificadas, desde a proposição política de objectivos de apropriação territorial, dando com pretexto supostas “purezas étnicas” que frequentemente não duvidam adornar-se com as névoas do mito, até à crise económica e à pressão demográfica, que, não carecendo, em princípio, de invocar justificações exteriores à sua própria necessidade, contudo não as desdenham se, num momento agudo dessas mesmas crises, for considerado útil o recurso táctico a tão adequados potenciadores ideológicos, os quais, por sua vez, num segundo tempo, poderão vir a transformar-se em móbil estratégico auto-suficiente. Infelizmente, os surtos de racismo e xenofobia, sejam quais forem as suas raízes históricas e as suas causas próximas, encontram, em geral, facilitadas as suas operações de corrupção das consciências públicas e privadas, entorpecidas, umas e outras, por egoísmos pessoais ou de classe, logo eticamente diminuídas, paralisadas pelo temor cobarde de parecerem pouco “patrióticas” ou pouco “crentes”, segundo os casos, em comparação com a insolente propaganda racista ou confessional que, aos poucos, vai despertando a besta que dorme dentro de nós, até a fazer saltar à luz do dia – para a intolerância, para a violência, para o crime. Nada disto deveria surpreender-nos, e contudo, uma vez mais, com desconcertante ingenuidade, se não com censurável hipocrisia, andamos por aí a perguntar-nos como foi possível ter regressado a praga depois de a termos julgado extinta para sempre, em que mundo terrível estamos, afinal, vivendo, quando pensávamos ter progredido tanto em cultura, civilização e direitos humanos.

Que esta civilização – e não me refiro somente ao que denominamos civilização ocidental, mas a todas, desenvolvidas ou atrasadas,  que estão sofrendo o choque das rápidas transformações do nosso tempo, tanto as científicas e tecnológicas como as morais e axiológicas –, que esta civilização está a chegar ao seu termo, parece não oferecer dúvidas a ninguém. Que entre os escombros e avatares dos regimes e dos sistemas – socialismos pervertidos e capitalismos perversos – começam a esboçar-se recomposições novas dos velhos materiais, eventualmente articuláveis entre si, ou, ainda que ligados pela lógica de ferro da interdependência económica e da globalização informática, prosseguindo com estratégias aperfeiçoadas os conflitos de sempre – tudo isto parece ser, igualmente, bastante claro. De um modo muito menos evidente, talvez por pertencer ao que denominarei, metaforicamente, as ondulações do espírito humano, creio ser possível identificar na circulação das idéias um impulso tendencialmente dirigido a um novo equilíbrio, a uma “reorganização” axiológica que deveria supor, a par do pleno exercício dos direitos humanos, uma redefinição dos seus deveres, hoje tão pouco estimados, passando a colocar-se, ao lado da carta dos direitos do homem, a carta imperativa e indeclinável das suas obrigações. Ora, se não me equivoco demasiado, esta reflexão que parece querer despontar no meio das nossas perplexidades, teria de começar por proceder ao reexame e crítica de alguns conceitos correntes, apesar de esplêndidos e generosos, que fazem parte, por contraste e em enganadora antonímia, daquele universo vocabular em que reinam, efectivamente, como sombrios e terríveis astros, a xenofobia e o racismo. Refiro-me, em particular, à tolerância, essa palavra que tem feito correr rios de tinta, tantos como a sua contrária e irredutível inimiga – a intolerância.

Dizem-nos os dicionários que “tolerância” e “intolerância” são conceitos extremos e incompatíveis entre si, e, por este modo os definindo, concitam-nos a situar-nos, com exclusão de outras alternativas, em um daqueles dois polos, como se, além deles, não pudesse existir outro espaço, o espaço do encontro e da solidariedade. Desse espaço não temos a palavra identificadora, não temos, para chegar a ele, a bússola, a carta de rumos. Mas, se não está nos dicionários a palavra, é só porque não possuímos a consciência que a teria feito nascer, é só porque não levamos no coração o sentimento que lhe conferiria uma definitiva humanidade: parafraseando remotamente Marx, direi que os homens não podem, antes do tempo certo, criar as palavras de que, sem o saberem, ou não querendo ainda sabê-lo, vitalmente já estavam necessitando. Ponderadas as situações, observados os comportamentos, que é a tolerância senão uma intolerância ainda capaz de vigiar-se a si mesma, mas temerosa de ver-se denunciada aos seus próprios olhos, sob a ameaça do momento em que as novas circunstâncias lhe arranquem a máscara que outras circunstâncias, de sinal contrário, lhe haviam colado à pele, como se aparentemente fosse já a sua própria? Quantas pessoas, hoje intolerantes, eram tolerantes ainda ontem?

Que papel poderá então desempenhar o escritor, esse a quem parece ter sido definitivamente retirada a antiga missão, tacitamente compreendida e reconhecida pela sociedade, de abrir caminho às verdades possíveis? Que dirá, que escreverá ele, se cada vez se vem tornando mais óbvia a impotência da literatura, de cada obra literária e de todas elas juntas, para influir de modo profundo e permanente na vida social? Se as sociedades não se deixam transformar pela literatura, se, pelo contrário, é a literatura que se encontra hoje assediada por sociedades que não lhe pedem mais do que as fáceis variantes duma mesma anestesia do espírito, isto é, a frivolidade e a brutalidade, como poderemos fazer intervir socialmente a voz e a acção dos escritores, ao  menos daqueles a quem o compromisso com a escrita, absoluto ou relativo seja ele, não fez esquecer as suas obrigações,  relativas e absolutas, de cidadãos?

Publicar artigos, dar entrevistas, fazer conferências, são tarefas que decorrem daquilo que é o acto central do escritor: escrever. Com independência da natureza, exigência e singularidade da obra a que o escritor decidiu consagrar a vida – ou, em palavras menos solenes, o tempo, o talento e a paciência –, apetece dizer que todas as ocasiões deveriam ser aproveitadas por ele para glosar, já com pacíficos motivos, o dito de Cícero, quando no fim do seus discursos, viesse ou não a propósito, exigia a destruição de Cartago. As Cartagos de hoje chamam-se Intolerância, Xenofonia, Racismo, e nunca serão vencidas se não empenharmos no combate, escritores e não escritores, aqueles mesmos ingredientes com que se faz a obra literária – a paciência, o talento e o tempo, por esta ordem ou outra qualquer.

Mas, dos escritores, convoquemos sobretudo a esta luta a concreta figura de homem ou de mulher que está por trás dos livros, não para que ela ou ele nos digam como foi que escreveram as suas grandes ou pequenas obras (o mais certo é não o saberem eles próprios), não para que nos eduquem ou guiem com as suas lições (que muitas vezes são os primeiros a não seguir), mas para que simplesmente se nos mostrem todos os dias como cidadãos deste presente, ainda que, como escritores, creiam estar trabalhando para o futuro. Não se pede que retomemos (se para tal não encontramos no nosso foro íntimo motivos nem razões) os caminhos de natureza sociológica, ideológica ou política que, com resultados estéticos variáveis, levaram ao que se chamou literatura comprometida – mas que tenhamos a honestidade de reconhecer que os escritores, em grande maioria, deixaram eles próprios de comprometer-se, e que algumas das hábeis teorizações com que hoje nos envolvemos acabaram por construir-se como escapatórias intelectuais, modos mais ou menos brilhantes de disfarçar a má consciência, o mal-estar de um grupo de pessoas – os escritores, precisamente – que, depois de se terem proclamado a si mesmas como farol do mundo, estão acrescentando agora, à escuridão intrínseca do acto criador, as trevas da renúncia e da abdicação cívicas.

Nota:

Texto lido em palestra realizada no Rio de Janeiro, a convite do jornal O Globo, em fevereiro de 1996. A transcrição segue a publicação disponível no livro Raça e diversidade, organizado por Lilia Moritz Schwarcz e Renato da Silva Queiroz (São Paulo: Edusp; Estação Ciência, 1996).


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