Gastão Cruz, poeta e ensaísta
Som da linguagem
Por vezes reaprendo
o som inesquecível da linguagem
o som inesquecível da linguagem
Há muito desligadas
formam frases instáveis as
palavras
Aos excessos do céu o silêncio
as constelações caem vitimadas
pelo eco da fala.
— Gastão Cruz, em Câmpanula
Minha descoberta sobre o trabalho
poético de Gastão Cruz se deveu ao contato com outra obra: a de Fiama Hasse
Pais Brandão. Os dois foram casados e atuaram vivamente nas artes em Portugal.
Estiveram, por exemplo, entre os fundadores do Grupo de Teatro de Letras, de
quando eram estudantes na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; os
dois estão entre os nomes principais do coletivo Poesia 61, que se tornaria um marco
para a poesia da segunda metade do século XX.
Minha descoberta de Gastão Cruz foi
logo dupla: o poeta autor da recente antologia editada no Brasil A moeda do
tempo e outros poemas (Língua Geral, 2009) e o ensaísta que no dia 18 de
setembro de 2009 subiu à tribuna do histórico prédio da primeira sede da Universidade
Federal de Salvador para proferir a conferência “Poéticas portugueses do século
XX”. E esse título está perfeitamente alinhado com um livro que é referência
para compreender a poesia portuguesa, A poesia portuguesa hoje (1973).
Numa resenha crítica sobre um dos
primeiros livros do autor a reunir toda a sua poesia — Poemas reunidos (1999)
— Catherine Dumas afirma que: “Gastão Cruz é um daqueles poetas […] que é
crítico da sua geração, também o é de si mesmo”. Isto é, chama atenção para
certa natureza da própria formação do poeta nos tempos correntes. A separação entre
poesia e ensaio, ou entre criação e crítica, é puramente formal, visto que na
prática as duas formas se implicam enquanto exercício fundacional.
Um poeta alheio aos seus
contemporâneos parece uma imagem inconcebível nos dias vigentes; e, se este
mesmo poeta vai ao território da crítica, logo é impossível deixar passar sua
sensibilidade para compreender movimentos, temas, estéticas e o próprio
funcionamento da história literária. Foi isso que consegui perceber da valiosa
intervenção na abertura do XXII Congresso Internacional da Associação
Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa.
Daí — e isso é um mérito exclusivo
do intelectual sensível — consegui me motivar não apenas por descobrir melhor
sobre o próprio orador e também dos vários nomes que passaram pela sua
exposição e conseguiram alcançar as linhas das minhas anotações. Muitos que,
igual a Gastão Cruz, permanecem escondidos dos leitores brasileiros, uma vez que
se nota claramente certo barreira entre o mercado dos dois países. Do poeta em
questão, só para citar um exemplo, nada mais existe por aqui que a antologia
referia acima.
E a obra de Gastão Cruz é vasta.
Uma consulta na infinita página da web, encontro muitos títulos;
veja-se, a carreira do poeta começa em 1961. Estamos às portas de meio século
de atividade literária. Se não podemos ler ou acessar facilmente a obra, fique
ao menos registrado alguns dos seus títulos: A morte percutiva (1961); Hematoma
(1961); A doença (1963); As aves (1969); Teoria da fala
(1972); Os nomes (1974); Campânula (1978); Órgão de luzes
(1981); O pianista (1984); Transe (1992); As pedras negras
(1995); Crateras (2000); Rua de Portugal (2002); Repercussão
(2004); e o recente A moeda do tempo (2006).
A chegada da obra do poeta entre
nós se deve ao esforço do Professor Jorge Fernandes da Silveira. É dele a
organização da antologia que abriga os poemas do livro recente e de outros
poemas escolhidos. A editora que publica o livro, dispensa apresentações: tem
investido na difícil tarefa de reduzir as distâncias entre duas literaturas que
se entendem numa mesma língua. Quer ver? Realiza uma consulta nessa mesma web
sobre os livros já editados pela casa e saberá o que digo.
Gastão Cruz nasceu em Faro, cidade
ao sul de Portugal e capital da região do Algarve. Nasceu em 1941, o que significa
dizer que contava apenas 19 anos quando publica o primeiro livro de poemas,
lido pela crítica como marcado pelo interesse de nova poética, sem os
interesses da literatura neo-realista, talvez um dos períodos mais vivos da
literatura no seu país. Com Cruz, vieram também Maria Teresa Horta, Casimiro de
Brito, Luiza Neto Jorge, Fiama Hasse Pais Brandão — todos estreantes e agora
todos nomes essenciais da poesia portuguesa.
Sua formação começa pela vinda
para Lisboa, onde se fixa. Formou-se em Filologia Germânica na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa. Depois, atuou como professor, atividade exercida variadamente
dentro de fora do seu país, como o período no King’s College de Londres, entre
1980 e 1986.
A vivência de Cruz nas letras é
vasta. Ao reconhecido poeta, ao estimado professor e ao sensível ensaísta
podemos acrescentar ainda dois outros interesses marcantes na sua trajetória: a
vivência no teatro, referida no início dessas notas e que resultou em
encenações de textos de autores como Camus, Tchekhov, Carlos de Oliveira; e o
tradutor interessado nas literaturas inglesa e francesa.
Este é um tipo que chamamos
diverso e completo, dois signos caros aos criadores do nosso tempo. Que sua
vinda ao Brasil e a chegada da antologia recente sirvam de alguma maneira para
abrir caminhos para uma presença mais viva entre nós. Só ganhamos. E, se comecei com um poema de Cruz, findo com este colhido na citada antologia brasileira.
Relatório em forma fechada
Os estragos da noite foram vastos,
Os estragos da noite foram vastos,
inversos ao pulsar da primavera:
há tempo em que se luta pelos gastos
rastos da vida e o tempo novo gera
desilusão somente, esse viscoso
correr da insónia como se já água
as lágrimas não fossem e no fosso
há pouco aberto qualquer outra água
de natureza opaca suspendesse
a sua interminável queda; voltas
por fim à noite espessa que já tece
a madrugada com as linhas soltas
da minha vida, versos que transformam
em realidade as sílabas que os formam
Ligações a esta post:
>>> No canal da Saraiva no YouTube, uma entrevista com Gastão Cruz
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