Cleonice Berardinelli, aristocrata do espírito
Por Pedro Fernandes
Da esquerda para a direita, a primeira é Cleonice Berardinelli em fala durante do XXII Congresso Internacional da ABRAPLIP, Salvador, 2009. |
“Ela faz
parte da aristocracia do espírito, essa que sim é necessária para a evolução da
sociedade.”
José
Saramago
Conheci a
Professora Cleonice Berardinelli por ocasião dos dias gloriosos. Os dias do
XXII Congresso Internacional da Associação de Professores de Literatura
Portuguesa (ABRAPLIP) realizado em setembro deste ano. O registro que restou está nesta fotografia capturada do meu celular que ilustra este breve texto. É uma imagem à distância, num grande auditório repleto de estudantes e professores numa das ocasiões, acho, mais concorridas do evento. Outros encontros se seguiram entre intervalos de eventos, mas acredito que nessa altura a pouca coragem para o pedido de fotografias já estava gasta e o ficou está na memória e nestas linhas.
Nos seus 93 anos de
idade, Cleonice Berardinelli é, no Brasil, um dos maiores expoente da crítica literária, e a principal no âmbito dos estudos da literatura portuguesa; ela fez uma fala emocionada e emocionante na sessão Memória no primeiro dia do
evento, 14 de setembro de 2009 – uma ocasião pensada pela organização do congresso para
a rememoração daqueles que definiram os percursos da crítica literária ou
dos estudos literários com atenção à literatura portuguesa por aqui. Seu texto versava sobre o convívio com o Professor Fidelino de Figueiredo.
Ontem, 16 de dezembro
de 2009, soube que Dona Cleo, como é carinhosamente chamada pelos seus alunos diretos ou indiretos – aqueles que, como, o são pelo que lêem da sua obra – foi ela
eleita imortal da Academia Brasileira de Letras. É a sexta ocupante da cadeira
n. 8 em sucessão a Antônio Olinto. Uma instituição que não tem sabido escolher
ao certo seus verdadeiros integrantes desde a fundação vez ou outra acerta nos
seus eleitos. Esta foi uma vez. Ou seja, é de se aplaudir o reconhecimento da professora amante
da literatura de Camões e de Fernando Pessoa pela mais importante casa de
intelectuais.
Cleonice
Berardinelli nasceu no Rio de Janeiro em 28 de agosto de 1916; fez o curso de
Letras Neolatinas na Universidade de São Paulo (USP), depois de interromper o que parecia
ser uma promissora carreira como pianista: na capital carioca fez, no Instituto
Nacional de Música, todos os cursos teóricos, nos quais se diplomou, sob
orientação do Maestro Oscar Lorenzo Fernandez.
Foi em São
Paulo que terminou o curso secundário e depois ingressou na USP. Nesta instituição
foi aluna de um dos professores que estão na base de formação dos estudos de literatura
portuguesa no Brasil, o referido Professor Fidelino de Figueiredo, motivo de sua intervenção no Congresso da ABRAPLIP. Cleonice foi sua
assistente.
Depois, no retorno repentino para o Rio, ela conheceu o professor da mesma
cátedra na Universidade do Brasil, Thiers Martins Moreira; ele fez o mesmo
convite do mestre de São Paulo e foi, então que continuou seu trabalho com a
literatura e ampliou sua formação: o Doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas
pela Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil em 1959 e a Livre-docência
em Literatura Portuguesa no mesmo ano pela mesma instituição. Poesia e
Poética de Fernando Pessoa foi sua tese nesse concurso – a primeira no país
sobre o poeta português.
A carreira
acadêmica de Cleonice Berardinelli é ampla, assim como é extensa a variedade de publicações
em estudos da literatura portuguesa. Fui descobrir sua ensaística na biblioteca da universidade na angústia de compreender o fenômeno da heteronímia de Fernando Pessoa. A sua simplicidade capaz de desfazer o complexo logo me prendeu atenção, assim como acontecera quando leitor de alguns dos ensaios de Antonio Candido.
Além dos textos sobre Fernando Pessoa e seus heterônimos que depois vim descobrir comuns a todo
estudante de Letras como eu (e não foi no meu caso se não fosse meu pequeno instinto de curioso), estão suas leituras sobre a obra de Mário de Sá-Carneiro, o teatro de Gil
Vicente, a geração de 1870, e claro, a obra de Camões. E sobre cada um deles, mas também sobre outros nomes, como José Régio e Bocage, organizou antologias preciosas que funcionam sempre como uma porta de acesso às suas obras.
No verbete
produzido para a Academia Brasileira de Letras, de onde recorto algumas das informações apresentadas
neste comentário, estão entre os seus títulos, Cantigas de Trovadores Medievais em Português
Moderno, descrito como o seu primeiro livro, publicado em 1953; depois, uma antologia
anotada com seleta da obra de Mário de Sá-Carneiro, uma edição crítica do Auto
de Vicente Anes Joeira (alguém ainda se interessa pelo teatro português do século XVI?), uma antologia anotada da poesia de João de Deus,
uma edição crítica dos autos de António Ribeiro Chiado e uma antologia anotada com
e sobre a dramaturgia de Gil Vicente. Alguns desses trabalhos têm sido continuamente
revisados e reeditados.
Sobre
Fernando Pessoa, estão títulos como Fernando Pessoa: Obras em Prosa,
organizado para editora Nova Aguilar, Fernando Pessoa: Poemas, Poemas
de Álvaro de Campos e os recentes Fernando Pessoa, Outra Vez te Revejo
e a edição anotada de Mensagem, o único livro publicado pelo grande nome do modernismo português.
É uma riqueza
para o Brasil ter entre os seus uma figura como Cleonice Berardinelli, pena que
tão pouco se reconheça num país que ama odiar, ou quando não, ama ignorar seus filhos
mais ilustres. Ou ainda, um país que valoriza os de importância nenhuma, os mitos da cultura de massa. Além da vasta colaboração com os estudos da literatura portuguesa deste lado do Atlântico, existem ainda outras qualidades que saltam na figura de Dona Cleo e que me parecem caras aos indivíduos do nosso tempo: a dedicação amorosa pelo ofício, quando ainda a encontramos tão dedicada ao estudo numa ocasião quando bem poderia guardar o tempo para si própria; e os afetos, algo tão raro entre nós.
O contato com Cleonice Berardinelli me fez recordar um singelo poema de Ricardo Reis, heterônimo de Fernando Pessoa, recolhido nas Odes:
Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
Embora a posição passiva de Reis seja sempre incômoda para os de espírito irrequietos – que o diga o José Saramago de O Ano da Morte de Ricardo Reis – o conselho desenvolvido nestes breves versos serve também a estes. E Dona Cleo parece ser deles uma sua aluna exemplar.
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