Literatura e prática
Por Pedro Fernandes
Quem se debanda para estudar literatura ou qualquer outra arte sabe, ou pelo menos deve estar ciente, do caminho pedregoso a se vencer. E não é apenas uma pedra no meio do caminho, como o poema de Drummond nos faz crer à primeira leitura; a imagem do termo “caminho pedregoso” remete a um espaço onde a pedra, como na verdade está a pedra de Drummond, está em toda a parte. Haveremos de escolher o que fazer com tanta delas: se driblamo-las, se apanhamo-las e jogamos em quem as coloca no caminho, se apanhamo-las e levamos conosco, fazendo o fardo ficar ainda mais pesado, ou se, simplesmente nos acuamos e sentamo-nos sobre elas. Talvez, ao longo do trajeto, não necessariamente escolhemos uma das ações, mas fazemos o uso constante delas.
Dentre esse pedregulho, uma pedra tem me feito companhia desde meus tempos de faculdade e agora, novamente, ela me reaparece. Chamam a dita cuja de “Prática” e ela, já reparei há de surgir sempre que estivermos diante de todos com uma proposta, também chamada de projeto de pesquisa, cuja fonte de estudo é a Literatura. Diante dessa pedra, toda vez o que faço é olhá-la com certo desdém, amuar-me e sentar sobre ela. Com este texto, talvez, eu, finalmente, esteja apanhado-a para jogar em alguém. Mesmo não sendo esse o pretexto, é possível, entretanto, que alguém me leia dessa forma.
Essa pedra Prática tem me causado certo bate-boca entre eu e outras pessoas e entre eu e eu mesmo, principalmente, quando respondo, nas duas circunstâncias, que meu projeto simplesmente não possui essa dimensão. Talvez até hoje ninguém tenha é entendido o que reside por baixo dessa resposta e, por isso, o bate-boca, tantas vezes acalorado. Talvez também é que, nunca, quem me tem feito a pergunta, tenha refletido a carga de sentido que esta palavra carrega, a ponto de me dizerem, certa vez, que a minha visão de prática é ainda positivista-racionalista. Não me vejo assim. E sou ciente e crítico o suficiente. Acho que, quem me diz isso é que é positivista-racionalista. Tanto lhe serve a alcunha que me faz a bendita pergunta sobre a dimensão prática.
Não pretendo aqui refletir sobre os vários sentidos incutidos à dona Prática. Também não é pretexto meu prolongar esse bate-boca. É meu propósito apenas saber o porquê que, mesmo no terreno das Ciências Humanas, devo, sob pena de morte, forjar uma resposta quanto a dimensão prática para tudo que eu me ponha a produzir enquanto conhecimento. A meu ver, isso não nos compete e isso, de tanto que já foi dito, já está batido.
O estudo da Literatura, lugar de onde eu falo, nunca teve esse propósito, o propósito do “toma lá, dá cá”, o propósito de moeda de troca, que faço isso porque é para o bem-comum. (Talvez nunca ninguém, até mesmo os das Ciências Naturais e Exatas, que espalham aos quatro cantos a importância e relevância de suas pesquisas para a sociedade, tenha estado preocupado com esse propósito último, o de um bem-comum, ainda mais, quando está envolvido elementos como dinheiro e reconhecimento).
O que entendo é que, quanto mais satisfações eu dou aos outros disso tudo, mas meus propósitos vão sendo castrados e meus interesses engessados e derribados para outro terreno que não o da arte, embora, claro está, que lidar com literatura não um ofício artístico, bem sei. A questão está no zelo de tornar a arte em objeto destituído de arte.
A dimensão prática, repito, tal qual concebemos, a Academia e a sociedade, no campo dos estudos literários, não existe. O que existe é falacioso. São desculpas e modelos discursivos prontos para serem utilizados como resposta toda vez que soar aos nossos ouvidos a famigerada pergunta “Qual a dimensão prática da sua pesquisa”. O que existe está noutro campo, que até hoje, mesmo depois de Freud – reportando aqui ao ditado de que “Nem Freud explica”, como se o próprio tivesse tido alguém vez pretensão ou o poder de explicar tudo – as Academias e a sociedade ainda não entenderam. Estamos situados no campo outro; o campo de uma necessidade; e há, pergunto, dimensão prática nisso? E aqui me reporto a um texto do poeta Paulo Leminski, cujo título é “Inutensílio”:
“A burguesia criou um universo onde todo gesto tem que ser útil. E o princípio da utilidade corrompe todos os setores da vida, nos fazendo crer que a própria vida tem que dar lucro. Vida é o dom dos deuses, para ser saboreada intensamente até que a Bomba de Nêutrons ou o vazamento da usina nuclear nos separe deste pedaço de carne pulsante, único bem de que temos certeza. O amor. A amizade. O convívio. O júbilo do gol. A festa. A embriaguez. A poesia. A rebeldia. Os estados de graça. A possessão diabólica. A plenitude da carne. O orgasmo. Estas coisas não precisam de justificação nem de justificativas. Todos sabemos que elas são a própria finalidade da vida.”
Os estudos literários estão numa dessas finalidades. Dotá-lo de um valor de troca, que é o que está em voga nesse termo prática, é castrar, repito, o que há de arte na Literatura. Estaremos, se assim nos reduzirmos, fazendo qualquer coisa, menos estudar Literatura, que a bem da verdade, cá entre nós, não se estuda a Literatura, mas vive-se. Talvez essa sonhada praticidade resida num tempo anos-luz distante, só palpável àqueles que, já diante da minha pesquisa concluída, veja nela algum sentido ou propósito.
* Uma versão deste texto foi publicada no caderno Domingo, do jornal De Fato, 30 de agosto de 2009, p. 14.
Dentre esse pedregulho, uma pedra tem me feito companhia desde meus tempos de faculdade e agora, novamente, ela me reaparece. Chamam a dita cuja de “Prática” e ela, já reparei há de surgir sempre que estivermos diante de todos com uma proposta, também chamada de projeto de pesquisa, cuja fonte de estudo é a Literatura. Diante dessa pedra, toda vez o que faço é olhá-la com certo desdém, amuar-me e sentar sobre ela. Com este texto, talvez, eu, finalmente, esteja apanhado-a para jogar em alguém. Mesmo não sendo esse o pretexto, é possível, entretanto, que alguém me leia dessa forma.
Essa pedra Prática tem me causado certo bate-boca entre eu e outras pessoas e entre eu e eu mesmo, principalmente, quando respondo, nas duas circunstâncias, que meu projeto simplesmente não possui essa dimensão. Talvez até hoje ninguém tenha é entendido o que reside por baixo dessa resposta e, por isso, o bate-boca, tantas vezes acalorado. Talvez também é que, nunca, quem me tem feito a pergunta, tenha refletido a carga de sentido que esta palavra carrega, a ponto de me dizerem, certa vez, que a minha visão de prática é ainda positivista-racionalista. Não me vejo assim. E sou ciente e crítico o suficiente. Acho que, quem me diz isso é que é positivista-racionalista. Tanto lhe serve a alcunha que me faz a bendita pergunta sobre a dimensão prática.
Não pretendo aqui refletir sobre os vários sentidos incutidos à dona Prática. Também não é pretexto meu prolongar esse bate-boca. É meu propósito apenas saber o porquê que, mesmo no terreno das Ciências Humanas, devo, sob pena de morte, forjar uma resposta quanto a dimensão prática para tudo que eu me ponha a produzir enquanto conhecimento. A meu ver, isso não nos compete e isso, de tanto que já foi dito, já está batido.
O estudo da Literatura, lugar de onde eu falo, nunca teve esse propósito, o propósito do “toma lá, dá cá”, o propósito de moeda de troca, que faço isso porque é para o bem-comum. (Talvez nunca ninguém, até mesmo os das Ciências Naturais e Exatas, que espalham aos quatro cantos a importância e relevância de suas pesquisas para a sociedade, tenha estado preocupado com esse propósito último, o de um bem-comum, ainda mais, quando está envolvido elementos como dinheiro e reconhecimento).
O que entendo é que, quanto mais satisfações eu dou aos outros disso tudo, mas meus propósitos vão sendo castrados e meus interesses engessados e derribados para outro terreno que não o da arte, embora, claro está, que lidar com literatura não um ofício artístico, bem sei. A questão está no zelo de tornar a arte em objeto destituído de arte.
A dimensão prática, repito, tal qual concebemos, a Academia e a sociedade, no campo dos estudos literários, não existe. O que existe é falacioso. São desculpas e modelos discursivos prontos para serem utilizados como resposta toda vez que soar aos nossos ouvidos a famigerada pergunta “Qual a dimensão prática da sua pesquisa”. O que existe está noutro campo, que até hoje, mesmo depois de Freud – reportando aqui ao ditado de que “Nem Freud explica”, como se o próprio tivesse tido alguém vez pretensão ou o poder de explicar tudo – as Academias e a sociedade ainda não entenderam. Estamos situados no campo outro; o campo de uma necessidade; e há, pergunto, dimensão prática nisso? E aqui me reporto a um texto do poeta Paulo Leminski, cujo título é “Inutensílio”:
“A burguesia criou um universo onde todo gesto tem que ser útil. E o princípio da utilidade corrompe todos os setores da vida, nos fazendo crer que a própria vida tem que dar lucro. Vida é o dom dos deuses, para ser saboreada intensamente até que a Bomba de Nêutrons ou o vazamento da usina nuclear nos separe deste pedaço de carne pulsante, único bem de que temos certeza. O amor. A amizade. O convívio. O júbilo do gol. A festa. A embriaguez. A poesia. A rebeldia. Os estados de graça. A possessão diabólica. A plenitude da carne. O orgasmo. Estas coisas não precisam de justificação nem de justificativas. Todos sabemos que elas são a própria finalidade da vida.”
Os estudos literários estão numa dessas finalidades. Dotá-lo de um valor de troca, que é o que está em voga nesse termo prática, é castrar, repito, o que há de arte na Literatura. Estaremos, se assim nos reduzirmos, fazendo qualquer coisa, menos estudar Literatura, que a bem da verdade, cá entre nós, não se estuda a Literatura, mas vive-se. Talvez essa sonhada praticidade resida num tempo anos-luz distante, só palpável àqueles que, já diante da minha pesquisa concluída, veja nela algum sentido ou propósito.
* Uma versão deste texto foi publicada no caderno Domingo, do jornal De Fato, 30 de agosto de 2009, p. 14.
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