Elias Canetti: evocação sem porquê
Por Juan Malpartida
Elias
Canetti (1905-1994) pertence a uma tradição que não faz parte dos estudos
literários. Esta tradição se caracteriza por um signo inquietante: seus autores
escrevem sempre o mesmo livro, ainda que mudem de gênero e às vezes passem –
como no caso de Canetti – da ficção (Auto
de fé, por exemplo) ao ensaio erudito e sério (Massa e poder), passando por obras de reflexão tão pouco
demonstrativas que, em ocasiões, só parecem sustentar-se por sua enunciação (A província do homem).
Pergunto-me
se sua condição de judeu (descendia de uma família de origem sefardita) não teve
algo a ver com essa atitude de alto compromisso, próximo ao fanatismo – o que
chamaria de absoluto – na relação com a tarefa do escritor e com a obra em si,
concebida como uma aposta contra a morte.
A Canetti, o
autor de língua alemã de seu século o que mais lhe interessou, juntamente com
Kafka, foi Musil, quem tratou nos anos de Viena. Mas, junto a estes autores,
somaria Hermann Broch e talvez Thomas Mann, e embora haja uma certa distância,
Canetti não hesita em afirmar que o Gilgamesh,
a antiquíssima epopeia mesopotâmica, é, desde que a leu aos 17 anos, a obra que
mais influenciou sua vida.
Noutros,
essa aproximação poderia ser uma mera atitude cênica, mas não em Canetti. Agora,
não é fácil entendê-la se pensarmos que se trata de um texto fragmentado, e que
não se pode ser acessível graças a uma reconstrução filológica complexa a partir
dos fragmentos que sobreviveram em várias línguas. Talvez, na ordem biográfica,
caberia recordar, se se quer compreender esta leitura apaixonada, que o pai de
Canetti morre em 1913, quando a família vivia na Inglaterra, e que a leitura
mencionada poderia significar o primeiro descobrimento na ordem do mito
(poético) da perda (a morte de Enkidú e o lamento de Gilgamesh) e do confronto
coma morte.
Mas este
dado autobiográfico não explica nada, só assinala um momento crítico numa
experiência que é, acima de tudo, universal. O importante é o que Canetti fez
com ela, sua atitude filosófica, moral, literária, a sorte de metamorfoses em
que consiste sua obra e, na verdade, toda obra de criação. Fernando Savater
comparou essa rebelião de Canetti contra a morte com a de Unamuno; embora algo
de fato tenha entre os dois, acredito que é preciso sublinhar que em Canetti não
se dá o narcisismo pesado de Unamuno e o seu não menos asfixiante ergotismo teológico.
Elias
Canetti é um escritor impetuoso que não perde a forma; não por acaso seus
mestres também foram além de Franz Kafka, Robert Musil, Nikolai Gogól, Georg Büncher, sem esquecer o seu
amigo Karl Krauss, o autor de Os últimos
dias da humanidade, tão determinante para sua obra porque lhe influenciou e
porque fez com que se desfizesse, mais tarde, dessa influência. Até aqui, só
mencionei autores ocidentais, mas a literatura chinesa, tanto a criativa como a
filosófica, foi radicalmente determinante na sua formação e em seus gostos,
assim como em suas aspirações estilísticas.
Canetti
viveu, em certa medida, escondendo-se, embora sozinho para poder ser mais visível
como escritor. Ocultou sua personalidade através da publicidade, mas quis
situar suas palavras no espaço de risco da que exigia para a literatura e foi
um polígrafo secreto, ao parecer notoriamente mais abundante do que deu a
conhecer pelo impresso. Escreveu um romance que foi, em seu tempo, elogiado
pelos que importam, e todavia segue sendo um livro que conta, em várias línguas,
com leitores. Curiosamente, não voltou a escrever neste gênero, atitude que
para qualquer romancista atual, tanto
como para seu editor, deve parecer incompreensível. Dedicou várias décadas à
pesquisa e à escrita de um livro de ensaio, Massa
e poder, obcecado pelo fenômeno da desaparição do indivíduo na massa. Embora
valioso por momentos, não é difícil não ver nessa obra o fracasso de uma grande
ambição.
Hoje em dia,
quando a literatura se converteu numa mercadoria banal, quando se prostitui mais
e mais, a obra de Canetti pode se converter (quero dizer deveria, não sou tão otimista) tanto numa chamada de alerta como
numa atitude exemplar digna de se levar em conta na hora de escrever.
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