Fogo Morto, um romance de decadências
Por Pedro Fernandes
Confesso que estive certo tempo afastado da literatura brasileira, que, tanto li desde meados de minha adolescência e na faculdade. Mas, se a memória não me trai agora, o último que eu li foi Capitães da Areia, de Jorge Amado, sobre o qual redigi um artigo, que por sinal (faz bem tocar no assunto) ainda não achei conveniente torná-lo público. Foi quando me debandei para a literatura portuguesa, mais especificamente (os que me conhecem, sabem) por causa de José Saramago - nele tenho concentrado minhas energias seja na leitura da obra completa desse escritor, seja na de outros referidos por ele. Aliás, devo a Saramago minha redescoberta de Jorge Amado, porque quando li alguns dos seus romances, inclusive Capitães, fui inconsequente de me guiar pelo sectarismo da crítica literária que os professores nos dão em altas doses na faculdade.
Com uma disciplina no mestrado, tive de voltar a algumas lacunas de leitura da nossa literatura e foi quando li Fogo Morto, de José Lins do Rego. Não lera ainda nada do autor, apesar dos comentários, algumas comunicações assistidas em congressos e do filme O Engenho de Zé Lins, documentário de Vladimir Carvalho que vi numa das ricas sessões do Cine Cult em Natal. Agora, o que devo dizer sobre essa primeira experiência com o obra do escritor paraibano? Antes de tudo, que me encantei pelos tipos de Zé Lins. Não há como isso deixar de acontecer. Encantamento que possivelmente foi o mesmo de Antonio Candido quando fez a afirmativa, certa vez, que, Capitão Vitorino, o Papa-Rabo, era uma das personagens mais significativas da galeria de personas da ficção brasileira. E é mesmo. Todo seu trato desbocado e de sangue quente que circula nas veias desse sujeito de tinta e papel é muito típico do homem médio do interior do Nordeste. É, sem dúvidas, o que a crítica já tantas vezes o chamou de Dom Quixote brasileiro, que na necessidade da honra, coisa tão vã desde sempre no Brasil, não mede esforços em defender seu compadre, o seleiro José Amaro, que foi enxotado do sítio onde vive, nos fundos do engenho do coronel Lula.
Fogo Morto me parece ser, a julgar pelo título, a reflexão sobre uma leva de decadências, a começar pela mais visível, admitida pelo próprio escritor, que foi o fim do ciclo da cana-de-açúcar (mais um) e dos engenhos no Nordeste brasileiro (o próprio Zé Lins é semente do engenho, nasceu no Pilar, um dos muitos que já rendeu uma vida farta e hoje são apenas restos de construção); é evidente que com este fim todo um outro conjunto de ciclos vai se desfazendo: uma economia, um modo de vida, que vai da fartura ao sustento com "ovos de galinha", lembrando de Amélia, mulher do Lula, que sustém a casa enquanto pode depois de o Santa Fé ir de mal a pior; também das relações familiares, centradas no esfacelamento de um patriarcalismo que ronda à beira do precipício. Basta reparar que em duas famílias das três retratadas no romance, a do coronel Lula e a do seleiro Zé Amaro, é a figura da mulher que pelas frinchas toma pano para as mangas, principalmente nesta última em que a casa só se é povoada pela sombra lobisomem do seleiro, que a todo o tempo, pela raiva que nutre às fêmeas, age com impropérios; e, naquela primeira, em que os mimos de pai ultrapassa a barreira do zelo para o entendimento de uma relação de posse e desejo que beira ao incesto.
De uma beleza sensorial que nos faz sentir entre o meio rural dos engenhos de açúcar paraibanos, Fogo Morto certamente é, sem reduzir o caráter de obra de arte, um retrato vivo e fiel de um Nordeste que, se não fosse pelas mãos de Zé Lins, talvez passasse despercebido ao olhar da literatura e, consequente, da nossa história, afinal, este é um papel quase sempre preenchido pela ficção quando ainda não existem interessados por determinadas circunstâncias factuais. E nisso reside um traço maior dessa obra: é tomando do cenário local, comum ao próprio escritor, cenário até então isolado das lentes arrumadinhas do Sul-Sudeste do país, que Zé Lins, apesar de rotulado de regionalista, com mero nome didático dado por aqueles da crítica que têm uma ordem e um espaço a zelar, faz sua grande obra. Disso sabemos, mas sabemos também que se não fosse regionalistas com Zé Lins estaria boa parte do Brasil ainda às escuras do olhar geral do país e, não só isso, estaria a literatura brasileira fadada ao fracasso, entendendo que, foi graças à leva de escritores de 1930, da qual o paraibano faz parte, que as nossas letras, enfim, pode se constituir frente e influência para outras letras.
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