Literatura e cidade: dez livros da literatura de língua portuguesa
Numa lista que editamos sobre literatura e viagem citamos um livro de Italo Calvino, As cidades invisíveis; livro que
poderíamos adotar sem maiores justificativas também numa lista de livros que
tragam em seu interior o tema de representação
da cidade. "De uma cidade, não
aproveitamos as suas sete ou setenta e sete maravilhas, mas a resposta que dá
às nossas perguntas", afirma Marco Polo a Kublai Khan a certa altura no
romance. Este é um livro em que Italo Calvino, “através da ficção, nos propõe
percursos múltiplos, em busca de respostas para as perguntas que a realidade
urbana vem instigando, desde o início da modernidade. A situação dialogal entre
os dois interlocutores gera grafias urbanas que constituem o relato sensível
dos modos de ver a cidade, produzindo uma cartografia simbólica, captando a
cidade enquanto ‘símbolo complexo capaz de exprimir a tensão entre
racionalidade geométrica e emaranhado de existências humanas’, como ressalta
Italo Calvino, no ensaio ‘Exatidão’, uma das Seis propostas para o próximo milênio”.
Em As cidades invisíveis, “Marco Polo
descreve a Kublai Khan as cidades do império que o soberano desconhecia. O
aventureiro veneziano viaja, na verdade, no império da linguagem e constrói
cidades imaginárias, todas com nome de mulher. Traz uma forma vazia que é
preenchida por formas singulares e sensíveis, descritas com grande abundância
de detalhes”.
“As relações
entre literatura e experiência urbana tornam-se mais contundentes e radicais na
modernidade, quando a cidade transformada pela Revolução Industrial se
apresenta como um fenômeno novo dimensionado na metrópole que perde
gradativamente o seu métron. A desmedida do espaço afeta as relações com o
humano. Sob o signo do progresso, alteram-se não só o perfil e a ecologia
urbanos, mas também o conjunto de experiências de seus habitantes. Essa cidade
da multidão, que tem a rua como traço forte de sua cultura, passa a ser não só
cenário, mas a grande personagem de muitas narrativas, ou a presença encorpada
em muitos poemas. Assim, é Paris para Victor Hugo, Balzac e Zola, ou para
Baudelaire em seus poemas; ou Londres para Dickens. No mesmo diapasão, pode-se
perguntar o que significa Buenos Aires para Borges, ou Roberto Arlt, ou o
contemporâneo Ricardo Piglia; ou Lisboa para Eça de Queirós e Cesário Verde, ou
para José Cardoso Pires; o Rio de Janeiro para Machado de Assis, Lima Barreto,
João do Rio, Marques Rebelo ou Rubem Fonseca.”
Ante as
considerações de Renato Cordeiro Gomes (PUC-Rio) ousamos traçar alguns livros
em que a cidade adquire força e expressão próprias. Esta não é uma lista
definitiva, nenhum um ranking e as
sinopses são, em grande parte, copiadas daquilo que apresentam as editoras.
Dividimos a lista em duas partes; nesta, o leitor tem acesso a livros da
literatura de língua portuguesa. Na segunda lista, livros da literatura
estrangeira.
1. A cidade e as serras, de Eça de Queirós:
Lisboa e interiores de Portugal do final de oitocentos e início de novecentos
esteve na visão do escritor. E sempre olhado com perspicácia e detalhismo. Este
é um dos últimos romances de Eça, pertence a um momento em que se afasta do
realismo e da crítica que fazia a sociedade de seu tempo, mas não deixa de
reparar no modus vivendi do homem,
agora moderno, e realiza uma eficaz relação entre a vida módica e agitada de
Paris e a vida tranquila e pacata da cidade serrana de Tormes. No enredo, Zé
Fernandes relata a história de Jacinto de Tormes, um português que, retornado
da cidade luz enfrenta todos os percalços de uma vida entre a agitação (seu
breve passado) e vida agrária do novo lugar.
2. O ano da morte de Ricardo Reis, de José
Saramago: ninguém descreve com tanto primor a Lisboa do final dos anos 1920 e
início da década seguinte. Através do heterônimo de Fernando Pessoa,
recém-retornado do Brasil, onde vivera durante longo tempo, o escritor
português espreita uma cidade com ar cosmopolita, mas profundamente fechada num
tempo dos mais negros da história. Não é só a morte do poeta maior que tolda a
vista da capital portuguesa; é, sobretudo, o advento de uma era de trevas com o
nascimento das várias ditaduras na Europa e em Portugal; tudo filtrado pela visão
de quem algum dia disse que sábio é quem se contenta com o espetáculo do mundo.
Para uma visita à Lisboa medieval é válido ler História do cerco de Lisboa e Memorial
do convento, romances que antecedem este agora indicado.
3. Capitães da areia, de Jorge Amado: a
Bahia é Jorge Amado e Jorge Amado é a Bahia – alguém já disse. O romancista
foi, sem dúvidas, um dos que viveram a experiência do lugar para elaboração das
tramas diversas e interessantes que construiu. Tanto que poderíamos citar aqui
qualquer um de seus romances, porque quando não estamos na região cacaueira de
Ilhéus, estamos nas ruas de Salvador. Neste romance, ao se dedicar à história
de um grupo de garotos de rua, Jorge revela a cidade como peça modelar do espírito
de seus habitantes; é ora um espaço tomado pelo colorido da efervescência cultural
ora tingindo-se de cinza pelo horror impetrado pelo homem contra o homem.
4. Budapeste, de Chico Buarque: o leitor
jamais sairá desse romance sem associar o amarelo à cor da cidade húngara; a
cidade aqui é matéria de reinvenção do homem. Imagine que um ghost-writer,
depois de uma série de acontecimentos insólitos numa viagem que fez para um
congresso de escritores do seu tipo, tem de ficar preso a Budapeste e aí
aprender húngaro para escrever sem se passar por outro. Pois bem, é este mote
de um dos romances mais bem construídos de Chico Buarque, que já examinou um
Rio de Janeiro entre dois mundos distintos em Estorvo e que não esquece a cidade carioca também neste romance
fora do Brasil.
5. Dois irmãos, de Milton Hatoum: se sobre
a Bahia indicaríamos qualquer romance de Jorge Amado, sobre o Amazonas e mais
especificamente sobre Manaus, indicaríamos Milton Hatoum. Neste romance, a atmosfera
pesada e tropical da capital oferece ao narrador substrato para a conturbada relação
de dois irmãos condenados ao enfrentamento pelo lugar na família.
6. Boca do
inferno, de Ana Miranda: a Salvador de final do século XVII entre os desmandos
e devassidão – é o cenário também enformador
da personalidade da figura central desse romance: o poeta Gregório de Matos. Um
dos melhores romances da literatura brasileira contemporânea, pela riqueza
linguística, pelo tratamento dado à história, pela recriação de personagens tão
fundamentais para a nossa nascente cultura e pela maneira precisa com que pinta
os detalhes dessa cidade só registrada en
passant pelo olhar de viajantes e exploradores das nossas riquezas
naturais.
7. O livro de Praga, de Sérgio Sant’Anna: a
Companhia das Letras, em alguma ocasião dedicou-se a organizar uma coleção que
chamou de Amores expressos e da qual participaram alguns importantes nomes da literatura
brasileira contemporânea. Entre eles, um de nossos melhores contistas que teve
o privilégio de escolher Praga, por uma cidade de seu gosto pessoal e lhe
despertar certa atração criativa. E é justamente isso o que se passa no enredo
dos contos desse livro – que justapostos – formam uma só história: a de Antônio
Fernandes, espécie de alter-ego do próprio escritor que, em Praga, está
interessado em explorar as diversas possibilidades de apresentação da arte na
cidade, até encontrar-se com a pintura de Andy Warhol, a música da pianista
Béatrice Kromnstadt, as esculturas da pote Carlos, a peça teatral em que a
Alice de Lewis Carroll contracena com sua sombra, o texto de Franz Kafka
tatuado num corpo feminino. A cidade e sua incursão no corpo geográfico e
físico dão forma a essa obra.
8. Cidade de deus, de Paulo Lins: a
história de uma cidade que não deu certo ou que precisa sobreviver desde a
pequena criminalidade dos anos 1960 e entre a violência generalizada e o domínio
do tráfico de drogas da década de 1990. Um painel significativo de um Rio de
Janeiro explorado com todo gosto dos programas sensacionalistas que nunca se
cansam de expor diariamente o horror. O livro tem um tênue limite entre o
literário e o documental, uma vez que se fez a partir de uma longa pesquisa antropológica
que visava coletar relatos e fatos do cotidiano determinantes dessa nova
cartografia urbana.
9. Quem me dera ser onda, de Manuel Rui:
uma Luanda recém-saída do vergonhoso mapa da colonização impetrada por Portugal
em África; uma cidade dividida entre os escombros de uma guerra, o espírito
cultural que não morre nunca, mas tateia entre um modo de vida designadamente
europeu e angolano. Todo esse embate está expresso numa curta novela de Manuel
Rui que acompanha o dia-a-dia de uma família angolana num prédio que é metonímia
para se pensar a cidade de Luanda como território em embate.
10. Antes do nascer do mundo, de Mia Couto:
um lugar do interior de Moçambique, Jerusalém, e um narrador que acompanha
cinco almas apartadas das gentes e cidades do mundo. Pessoas que ensaiam um
arremedo de vida com o que têm: Silvestre e seus dois filhos, Mwanito e Ntunzi,
mais o Tio Aproximado e o serviçal Zacaria. Assim, Mia Couto reconta o lugar
perdido de um país que aos poucos morre, na força de sua tradição, nas
fronteiras de seu lugar.
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