Imortal Werther, imortal Goethe
Por Genoveva Dieterich
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A morte de Werther. F. C. Baude |
O autor de Fausto, Wilhelm Meister, As
afinidades eletivas, o prudente ministro e conselheiro de príncipes em
Wiemar, foi um artista adolescente,
demolidor de ortodoxias e academicismos, criador de uma nova linguagem poética
e precursor do romantismo revolucionário. Ante a estátua colossal e marmórea monopolizada
pela academia e o panteão, é necessário, pois, recordar o imortal autor do
imortal jovem Werther.
Como nenhuma
outra das obras-chaves da época criativa do jovem Goethe, assinalada entre os
anos 1771 e 1775, e transbordante de material poético incandescente, o Werther
representa essa impressionante tensão de entusiasmo e sensibilidade,
inteligência e impetuosidade que caracteriza a juventude do escritor e que só
pode definir-se como genialidade. Quando no outono de 1774 foi publicado em Frankfurt
o primeiro romance do jovem advogado com o título de Die Leiden jungen Werther, ou Os
sofrimentos do jovem Werther, o impacto na sociedade de sua época foi
fulminante. A febre wertheriana se expandiu por toda Alemanha e pela Europa,
graças às múltiplas traduções.
O trágico
destino de Werther tocou profundamente o sentimento coletivo do século que
gestava a revolução de 1789. A força subversiva de Werther foi perfeitamente captada em seu tempo. Embora o público
leitor demonstrasse seu entusiasmo lendo massivamente o livro – a werthermania foi um fenômeno único nas
letras alemães – os mantenedores da ordem tentaram neutralizar seu efeito pessoas
anatematizando-o e logo o ridicularizando. O perigoso livro que marcava seu autor com o estigma de Caim foi sistematicamente
tergiversado já em sua época. A imagem do jovem obsessivamente apaixonado, hipersensível,
melancólico, quase ridículo se superpôs à imagem original.
O Werther do estereotipo sentimental, tão
espalhado logo pelo romantismo, especialmente francês, se impôs ao Werther precursor do herói byroniano e
setendhaliano, tão consciente como rebelde, de cujo exemplo nada bom podia esperar
a sociedade autocrática e semifeudal de finais do século XVIII. E, todavia,
hoje Werther é sinônimo de lacrimoso
e romantismo inoperante. Sem dúvida, Werther
nada tem a ver com seu estereótipo.
Beleza vulcânica
Basta uma
releitura para estabelecer de novo a radical proposta, a insólita valentia, a beleza
vulcânica desta breve e concentrada peça narrativa que comoveu e marcou a
Europa. Na forma de romance epistolar lacrimoso, popularizada por Pamela (1740), de Samuel Richardson, e Nouvelle Heloïse (1761), de J. J.
Rousseau, o jovem Goethe verte um material semiautobiográfico de uma virulência
e uma concentração críticas e denunciatórias até então nunca vistas. Através da
personagem Werther, um jovem de raro talento, pintor, escritor, amante da
natureza e das crianças, defensor dos fracos, inimigo da injustiça e da
desigualdade, leitor fervoroso de Homero e de Osslan, Goethe descreveo choque
entre o ser humano total e a sociedade, entre o desejo absolutista de perfeição
e a relatividade da existência.
O suicídio com
que o autor culmina a vida de seu alter-ego e fecha magistralmente seu livro não
é um voo, mas um protesto. Werther não
sucumbe por debilidade de caráter, mas por excesso de ser o homme revolte por excelência e sua redução
pela posteridade como exemplo negativo não é mais que uma das perfídias da
história.
Sem retórica
alguma – que moderno e econômico vemos hoje a linguagem de Goethe! –, o autor
expõe ante o leitor o destino inevitável de sua personagem. Com veemência contida
expõe um quadro da época, da sociedade aristocrática na Alemanha dividida do
século XVIII, com suas rígidas barreiras sociais, sua estreiteza e
insensibilidade ante as inovações e as ideias, sua cruel intolerância para com
tudo o que não segue as normas estabelecidas. A crise existência de Werther é,
em primeiro lugar, social e política. A inviabilidade de seu conceito humanista
e livre de existência – o homem de acordo consigo mesmo, com a natureza e com a
sociedade – o destrói. Sua independência moral e intelectual o impede ser
subordinado, tanto ao embaixador para quem presta serviço alguns meses, como ao
aristocrata que lhe convida na qualidade de adorno artístico para sua estéril e
pequena corte.
A utopia wertheriana
O serviço à
mediocridade lhe degrada tanto como a outros homens de seu tempo – desde Mozart
a Hölderlin, passando por Schiller, Lenz, Kleist ou Beethoven. Mas havia outra
saída exceto esse serviço à mediocridade na Alemanha desse tempo?
O amor por
Lotte – a tão traída e levada paixão amorosa, que segundo as interpretações simplistas
é a causa primeira do triste fim de Werther – é tanto o amor por uma mulher
concreta, como o amor por uma forma de vida harmônica, isenta de subordinação,
oportunismo e ambição que Werther vê encarnada nela. No ambiente idílico da
casa paterna, rodeada de seus numerosos irmãos e da natureza, Lotte é a personificação
feminina do bom selvagem rousseauniano, do ser humano natural e bom. Nela a
utopia wertheriana se faz realidade, mas só passageiramente. A aparição de
Albert acaba com o espelhismo. Albert é o prometido de Lotte, mas também é o
princípio de realidade de que fala Freud. Diferente de Werther, sabe integrar-se
à vida comum, fazer compromissos. Enquanto o jovem Werther é absolutista, ele é
relativista. A relação antitética e complementar de ambos está plasmada no
famoso diálogo sobre o suicídio, em que finda a primeira parte do livro. A
sorte de Werther está traçada.
Goethe sabia
muito bem que a tragédia de Werther radica em sua inflexibilidade subjetiva e egocêntrica,
isto é, em sua dificuldade para passar de adolescente para a idade adulta. Se quer
sobreviver, tem que integrar em sua persona algo da concreção e imperturbabilidade
de Albert e algo da generosidade de Lotte, sem para isso renunciar ao seu
protesto, à sua paixão. “Seja você um homem!” – implora Lotte na cena final do
segundo livro.
Goethe tirou
as conclusões que Werther não foi capaz de extrair de suas experiências. Sua
ida a Weimar em finais de 1775 foi um compromisso com a realidade e as limitações
da Alemanha de então. Foi um ato de maturidade. Aceitar a subordinação a um
príncipe – o de Weimar – mais jovem e com bastante menos talento que ele,
aceitar a estupidez de uma corte que só com o tempo e graças a seu esforço se
converteria numa Atenas alemã, não deve ter sido fácil para o criador de uma
personagem indômita até as últimas consequências, em cujas veias corria o mesmo
sangue libertário e violento do seu criador. Provavelmente Werther, com sua
morte, salvou a vida de Goethe, e lhe permitiu deixar de ser um advogado com
futuro incerto para ser um homem de Estado, de ser um rebelde para ser um
clássico. Que z o ermitão, “toda a ordem está escrita neste livro, que algumas
vezes leio para recordar a graça que nosso Senhor me fez neste mundo, posto que
honrava e mantinha a ordem de cavalaria em meu poder”. Qual outra maneira de homenagear
ao homem prudente de Weimar que recordar Werther,
o jovem apaixonado?
* Tradução de "Inmortal 'Werther', inmortal Goethe", El País.
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