Auto da barca do inferno, de Gil Vicente
Por Pedro Fernandes
Gil Vicente pode ser considerado um dos grandes gênios da Literatura Ocidental, de importância paralela a William Shakespeare, para citar outro nome do teatro. O português despontou como um dos maiores dramaturgos populares, seja nos temas, na linguagem, na figura dos atores. Durante sua vida escreveu e representou uma diversidade de peças que, mesmo com seu empenho em vê-las reunidas numa só edição, não chegou a usufruir do largo trabalho. E se hoje conhecemos sua obra, em parte deveu-se ao empenho de seu filho que publicou em 1562 uma compilação daquilo que o pai havia reunido, embora a crítica especule que muita coisa tenha sido omitida propositalmente, bem como tenha feito alterações nos originais.
O Auto da barca do inferno é apenas uma das 46 peças, grande parte delas escritas em espanhol. A crítica costumeiramente divide esse colossal conjunto de textos em pelo menos três fases: uma que vai de 1502 a 1514 marcada pela influência de Juan del Encina, outra que vai de 1515 a 1527 conhecida como o auge da carreira do dramaturgo (o texto sobre o qual falamos insere-se nesse período) e a terceira que tem o ano de 1528 como o ano-chave. Esta última fase é a que Gil Vicente instrumentaliza seu teatro de uma verve mais intelectual, de consequência sobretudo clássico-renascentista. Tamanha produção e tamanha importância que, não se pode falar de teatro em Portugal, sem que tenha de mencionar a obra vicentina.
Suas peças são escritas dentro de um padrão de extrema autonomia, onde a galeria de personagens aborda todos os tipos da sociedade de seu tempo. Suas farsas fustigam desde o papa, o rei, o alto clero, até a mais baixa classe social, como a dos agiotas, a das alcoviteiras, a dos artesãos, entre tantos outras da vida. É um teatro, conforme compreende Massaud Moisés "baseado na espontaneidade e tendo em mira divertir a Corte", de passo, portanto, marcado pelo improviso, o qual jamais será captado pela esfera do texto escrito.
Auto da barca do inferno é uma dessas sátiras que pelo poder de afronta à ordem dominante deve ter sido encenada muito à base do limite censório imposto pela ocasião, muito embora o próprio texto deixe denunciar certo trabalho de não-apresentação às claras do real propósito; a linguagem e jogo de cena e as limitações críticas do público para o qual era encenado (não é porque estamos na Corte que tenhamos o melhor dos públicos) tenha deixado escapar muito dessa condição de revelação do encoberto pelo mar de lama da hipocrisia do poder.
O texto é um dos exemplos que atestam um dramaturgo compromissado "que coloca sua poesia e seus predicados a serviço dum espetáculo mais exigente e, por conseguinte, de uma causa: respirando a atmosfera renascentista e dando expansão às virtualidades pessoais", lembra Moisés. Gil Vicente demonstra ter sido um artista dotado para a intervenção, numa época em que o intuito do criador estava muito mais para o de elaboração de uma sedução catártica capaz de abstrair o público e levá-lo ao universo frívolo do entreter pelo entreter.
O Auto da barca do inferno não poupa ninguém; todos são analisados, digamos, assim, como fazedores de uma trama hipócrita, a realidade; isto é, esta é uma peça ora de acusação, ora de chamamento à moralidade e, em tudo por tudo, de acusação. O que valerá à leitura de um texto dessa natureza para o tempo de hoje? Primeiro, ver de perto essa genialidade do criador português sobre a qual inferimos no começo deste texto. Depois, uma compreensão muito honesta acerca de um lugar da história geralmente vendido como o tempo de perfeição da comunidade humana.
E, por fim, visualizarmos que, entre esse passado sempre visto como tão distante, ainda é mais atual do que imaginamos. Afinal, quando o assunto é poder, parece que sempre estaremos condicionados pela capacidade de sempre alimentarmos a realidade de uma natureza farsesca; além disso, a miséria humana, as prevaricações, o suborno, a corrupção, as glórias prometidas são, desde sempre elementos participativos na história dos homens.
Comentários