Os sertões, notas e impressões de uma leitura
A guerra de Canudos foi um refluxo em nossa história. Tivemos,
inopinadamente, ressurreta e em armas em nossa frente, uma sociedade velha, uma
sociedade morta, galvanizada por um doido.
– Euclides da Cunha, Os sertões
Há alguns grandes livros da Literatura que são-nos custosos ler; parece
que necessitam, por parte do leitor, de uma vontade que venha de fora para
dentro para seu feitio. Os sertões, de Euclides da Cunha, foi-me um
desses grandes livros que teve de vir o incentivo de leitura da parte de fora
para a vontade de lê-lo, já em tempos em mim, realmente fosse desperta. O que
irei apontar nesse texto são notas resultadas da primeira leitura que fiz da
obra. Logo, talvez, muitas das constatações sejam constatações corriqueiras,
capazes de serem encontradas na próxima esquina que o leitor comum for, mas são
constatações válidas, no sentido de que trazem o sentimento meu de leitor
diante desse texto.
1
A primeira parte da obra, intitulada de “A terra”, é a meu ver a preparação
de um cenário, meticulosa, dada num movimento de câmera que ora é uma miragem
cartográfica, ora geográfica, distante como alguém que só observa/descreve um
mapa de perto como que o narrador dele (o cenário) fazendo parte. Um movimento
que primeiro obedecer uma linha de fora para dentro, mas que adentrando mais na
narrativa percebemos que não há linhas a obedecer, apenas um fluxo, como o de
uma mente/olho que observa e lança esse olhar no papel a partir de então esboça
coordenadas para o cenário que vai se erguendo à sua frente.
O sertão ou os
sertões – o sertão está em toda parte, como dizia Guimarães Rosa – palco, da
trama também é-nos na rica carga de detalhes que mais parecem aqueles bordados
coloridos tecidos pelas sertanejas, de tons diversos, vivos, pulsantes,
engenhoso, que perde a vista de quem vê/ler. Esta primeira parte dá ao romance
o caráter de Gênesis cristão: primeiro a criação do mundo para depois povoá-lo
com a vida. Detalhe interessante é que em sendo o sertão personagem maior da
obra, os elementos que o vão compondo, enfeitando, como as árvores – juazeiro,
umbuzeiro, jurema, mandacarus, xiquexiques etc. (verdadeiros apanhados
biológicos de um bioma!) são eles também além de elementos do cenário que se
vai sendo construído, são personagens do drama. Com o sertão elas sentem a seca
e a fartura, padecem do mesmo processo cíclico que castiga ao passo que esculpe
o cenário.
A primeira parte da obra tem sua plasticidade invadida já pelo caráter
de denúncia: quando o narrador aponta o processo de desertificação – algo que
cem anos depois ainda se discute acaloradamente e pouco tem sido feito –
afinal, continua-se Brasil afora as queimadas sem controle; quando o narrador
aponta a necessidade de se fazer algo para a convivência com a seca, fenômeno
atestado como processo climático histórico.
2
A segunda parte intitulada “O homem”, é, fazendo jus ao Gênesis
cristão; uma vez formada a terra, o cenário, o palco, para o correr das ações,
há de se colocar as persona em circulação, dá-lhes corda, movimento, para que
se possam ser apuradas e processadas as cenas e, constituir-se o enredo. Esta
segunda parte de Os sertões: a criação do homem/ interior do brasileiro/
sertanejo que trilhará o drama de Canudos, além, é claro, da constituição das
figuras adjacentes, típicas personagens – o vaqueiro, o jagunço, o sertanejo
etc. - figurantes ou coadjuvantes na empreitada.
As reflexões do narrador
euclidiano se colocam para além das cartografias, geografias, biologias da
primeira parte; entram em cena o espírito de um historiador/ antropólogo que se
põe em movimento com aquele mesmo olhar perscrutador, fino nos detalhes, para
refletir a constituição desses seres.
E aqui reside o caráter fundamental que
se vai distanciar do Gênesis cristão: não estamos acompanhando um sujeito de
vara de condão nas mãos dizendo “faça-se a luz”, “faça-se o dia”, faça-se a
noite”, “faça-se isso”, “faça-se aquilo”, e tudo vai surgindo como que num
passe de mágica, não, estamos acompanhando um sujeito que tem o faro científico
e entendimento de que tudo é um processo gradativo, lento, que se dá na
corrente lerdeza dos séculos. Também assistimos um narrador entusiasmado com os
fatos culturais, religiosos e com a formação de espaços outros que se vão
esboçando nessa cena maior que é o sertão, até que damos Antônio Conselheiro,
figura mítica do romance.
3
A terceira parte d'Os sertões, não é nominada inocentemente, certamente. “A
luta”. Assistimos o que foi o desenrolar real, no sentindo de verdadeiro, da
formação do interior do Nordeste: é o correr das cenas, depois de montada a
arena povoada. Povoada de cangaceiros, jagunços, o que o narrador de Euclides
vai apontando nesse apocalipse são as pelejas, as rixas, que a sangue e
valentia iam delineando a cara do sertão. É outro Brasil o que se vê. Bem
distante da beleza e pacificidade com que narra as páginas tradicionais da
História. Se por entre os fatos históricos se vão mesclando ficções, não
deixamos, entretanto, de ter em mãos um rico documento dessa formação das veias
internas do País, que se deu a custo de sangue, nas rixas entre famílias, entre
polícia e Estado. Preservado está também a memória do que foi a saga de Canudos
– fulcro dessa terceira fase do livro.
4
Por tudo o que foi dito, deve ter ficado claro que, Os sertões é
certamente o único romance que reflete diretamente a constituição/ formação do
Brasil e sua multiplicidade étnica. “Não temos uma unidade de raça. Não a teremos,
talvez, nunca.”; “Não há um tipo antropológico brasileiro”. Sem perder o
caráter literário, Os sertões, também é o um rico documento histórico
quando atesta os movimentos misóginos que povoaram o País a remontar as chegada
dos portugueses. É, como documento, fotografia do poder opressor que sempre
este pisoteando os mais fracos. Entretanto, é o sertanejo, antes de tudo, não
fraco, mas um forte – parafraseando a célebre passagem do romancista de Os
sertões: “O sertão é homízio. Quem lhe rompe as trilhas, ao divisar à beira da
estrada a cruz sobre a cova do assassinado, não indaga do crime. Tira o chapéu,
e passa.”
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