Fernando Pessoa, o drama em gente

Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
— Fernando Pessoa

Fernando Pessoa, 1928. Foto: Acervo Casa Fernando Pessoa.


 
O texto em epígrafe é só uma das muitas possibilidades de síntese sobre Fernando Pessoa, criador que viveu ficcionalmente todo o drama da modernidade, feito de negações ao princípio da unidade subjetiva e outras unidades. Se o amigo Mário de Sá-Carneiro sofreu puramente esse drama, figurado na singular imagem do sujeito preso no labirinto do qual nunca conseguiu sair, ele buscou encontrar saídas fazendo-se, para tanto, outros. A tentativa pode ter falhado, mas o que ela gerou contribuiu para uma revolução na literatura do século XX.
 
Fernando Pessoa é o poeta que antecipa (ou ressuscita, se considerarmos a inovadora atitude da poesia grega) a validade do texto com material de pura significação. Falseando-se em muitos findou por também se falsear. Ao renunciar o culto da pessoa (e não há quaisquer trocadilhos com o seu nome) reeducou os leitores para a percepção do literário como trabalho criativo e não como uma tentativa (verdadeira ou não) de reprodução autêntica das coisas como se tentou acreditar piamente desde a leitura um tanto simplista da mimese aristotélica. Essas fronteiras constituídas mais de aberturas que de fechamentos parecem bem sintetizadas nos termos com os quais Leyla Perrone-Moisés nomeou um dos seus livros — Fernando pessoa: aquém do eu, além do outro.
 
Da extensa obra publicou em vida pouca coisa; seus poemas em língua inglesa e o reconhecido Mensagem, apresentado em 1934, depois de ser contemplado no mesmo ano com o Prêmio Antero de Quental, dirigido então por António Ferro, com quem Fernando Pessoa chegou a conviver na realização de Orpheu, a revista que modificou definitivamente os rumos da literatura portuguesa. Assim, a obra é extensa porque tudo o mais ficou por publicar, tornando-se um interminável monstro, ou, como um universo, sempre em expansão, seja pelas descobertas de novos textos, de reorganização de outros, seja pelas novas linhas para a compreensão sobre o funcionamento da criação, algo que ele próprio parece haver desistido de conseguir. Mesmo dos heterônimos, que tiveram vida bastante regrada nos limites da obra — nota-se um Pessoa seduzido pelos múltiplos eus durante toda a vida, mas especificamente entre alguns anos anterior a publicação de Orpheu e os anos de 1928-30 — ainda suscitam descobertas que remodelam suas criações.
 
O que melhor parece distinguir Fernando Pessoa é o substantivo inventor, o tipo que imagina, sonha, projeta (por vezes, habilmente) muita coisa e pouco realiza. Sabemos das suas investidas para a publicidade, para o cinema, para a dramaturgia; sabemos do fracasso de todas elas, existentes apenas para ampliar nossa sede de curiosidades sobre os limites sem limites do inventor. E no âmbito dessas profissões não desprezemos o tradutor (em alguns casos uma invenção de outro traduzindo uma das suas invenções, como procede Thomas Crosse, um protótipo de heterônimo inglês, vertendo para sua língua a obra de Alberto Caeiro). Nem o editor — é graças a ele que cedo se aprendeu a valorizar a obra de Mário de Sá Carneiro e de António Botto, dois desterrados que findaram a vida no país de destino e este último censurado pelo tom inapropriado às gentes de ouvidos e olhos pudicos da ditadura.
 
O nome próprio herdou em parte do dia quando nasceu. Fernando António Nogueira Pessoa nasceu no dia de Santo Antônio, em 1888; a ligação entre os dois nomes é mesmo genealógica — Fernando de Bulhões é o nome de batismo do santo. Na primeira e modesta infância passada entre o Largo de São Carlos e o número 104 da Rua de São Marçal, como toda criança ficciona suas personagens, tal como revela na carta (sempre pouco fiável) escrita a Adolfo Casais Monteiro que revela sobre a origem dos heterônimos.
 
O segundo casamento da mãe leva a família toda para a África do Sul; é em Durban que Fernando Pessoa constrói toda sua educação e na língua adotada que escreve parte da sua primeira obra. Na sua formação, inclui uma vivência excepcional com os escritores de língua inglesa — Edgar Allan Poe, William Shakespeare, H. G. Wells, Arthur Conan Doyle e W. W. Jacobs, os românticos sobretudo e é entre estes colherá a justificação para o seu exercício de ficcionalização de eus. Segundo Óscar Lopes, essa base está na leitura do alemão Novalis para quem “o gênio poético seria uma pluralidade, uma sociedade intensa de indivíduos diferentes, heterogêneos, em diálogo no interior de um mesmo ser; a personalidade genial seria, portanto, um produto de personalidades opostas mas equivalentes, seria uma personalidade elevada à segunda potência; o gênio sintetizaria o sonho e a vigília, o consciente e o inconsciente, a contingência e a necessidade, o pensamento e a acção, realizando a demonstração mais autêntica, aquela que procede por aceramento e, depois, síntese de contradições.”
 
Richard Zenith, na entrada para o Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, explica que a produção literária de Fernando Pessoa “resultou claramente do encontro, ou choque, entre esses dois ambientes [o português e o africano/ inglês] com as suas línguas e culturas tão diversas — sendo que Durban, naquela altura, era mais inglesa nos seus costumes e atitudes do que a própria Inglaterra.” É interessante essa observação porque corrobora para o olhar estrangeiro com o qual o poeta português sempre reparou sua terra natal; o Livro do desassossego, sua obra-prima atribuída à personagem de Bernardo Soares é um exemplo singular nesse sentido. Não quer dizer que isso se mostre numa visão aversiva pela sua terra natal; o mesmo Zenith, diz que “ainda que criticasse os portugueses por serem provincianos e achasse os políticos portugueses uma desgraça e o seu sistema económico um fiasco, Pessoa manteve sempre uma firme lealdade à sua pátria”. O que bem pode ser verdade ou não — e aqui ouve-se o eco da famosa frase “A minha pátria é a língua portuguesa”, do próprio Livro do desassossego.
 
Leitor atento do seu tempo, das múltiplas manifestações das vanguardas, pensou, criou e discutiu três movimentos literários, pode-se dizer assim, que se constitui a partir do convívio (mais missivista) com Mário de Sá-Carneiro: da experiência simbolista — com a qual flertou e expandiu depois do convívio com o Ocultismo — pensou o Paulismo. Depois deste, o Sensacionismo e o Interseccionismo; estes dois últimos com vivas presenças na poética do amigo que vivia em Paris. Vale notar que essas três possibilidades vanguardistas nascem em simultâneo, enquanto continuidades combinadas, a partir do convívio do poeta com sua própria obra e das inovações suscitadas pelo grupo de Orpheu. Os dois primeiros ismos aproximam sobretudo Pessoa e Sá-Carneiro e o terceiro Álvaro de Campos e Almada Negreiros.
 
“Em Pessoa, a noção de dispersão ganha um ritmo paralelo ao de Sá-Carneiro. Aquilo a que se chama Paulismo, numa corrente que se propaga a partir dessa temática em Pessoa e Sá-Carneiro, e que conduz a uma prática constante da incongruência semântica, assenta, sobretudo, num jogo com as formas do pronome pessoal. A caracterização vanguardista específica do Paulismo chega até a formas de escrita automática — como se exemplifica pelo poema de 1914 que começa pelo verso ‘Bateram com uma bota na cabeça de metade do silêncio’. Mas, no fundamental, opera-se ao longo desse ano de 1913, um sistemático estranhamento do sujeito.” É como observa Fernando Cabral Martins na sua Introdução ao Estudo de Fernando Pessoa*.
 
Paula Cristina Costa, na entrada sobre este termo para o Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português, sintetiza que o “Paulismo foi um dos ismos literários de transição, no âmbito do Modernismo Português, que permitiu, sobretudo a Fernando Pessoa e a Mário de Sá-Carneiro mas, também a outros poetas de Orpheu, estabelecer uma ponte entre a herança neo-simbolista, com uma presença muito marcada ainda no início do século XX em Portugal, e o nascimento de um entusiasmo, por parte de toda esta geração, pelas novas tendências das vanguardas europeias. Derivando etimologicamente da primeira palavra do poema “Impressões do Crepúsculo” — “Pauis de roçarem ânsias pela minh’alma em ouro” —, poema que, aliás, rapidamente passou a ser conhecido por “Pauis”, esta atitude literária foi, simultaneamente, um reflexo nítido das preocupações estilísticas e temáticas do simbolismo francês e do de Pessanha, muito em particular, se bem que já se apresentando como um enorme progresso face a todo esse simbolismo francófono (francês e belga) ou mesmo português. Segundo Almada Negreiros, este termo paulismo, ou mesmo a própria metáfora de pauis utilizada por Fernando Pessoa no seu poema, teria sido inspirado em “Paludes” de André Gide, reforçando deste modo a natureza e a herança francesa neo-simbolista deste ismo.” “Impressões do Crepúsculo” aparece publicamente na revista Renascença de fevereiro de 1924.
 
O Sensacionismo constitui parte nas circunstâncias da produção de Orpheu e se confunde com o aparecimento da heteronímia em Fernando Pessoa. Como o termo sugere, o tema poético dominante é a sensação, aquilo que antecede a aparição das coisas e da realidade enquanto materialidade. É desse interior, constatando-se que sentir só se faz pelo limite da razão que se designará a poética do fingimento, base para o drama em gente e singular giro na matéria poética em relação ao imperativo romântico do sentimento. Este ismo é chave de compreensão do fenômeno poético para Pessoa e nele convivem as componentes paúlicas e interseccionistas.
 
Enredado por uma teorização dessas inovações, Fernando Pessoa esboça várias notas sobre o Sensacionismo. Nas Páginas íntimas sabe-se do interesse seu em constituir uma antologia da poesia sensacionista portuguesa e num esboço de carta ao seu editor inglês designa-a como “o panteísmo transcendentalista português”. Tal como observa Fernando Cabral Martins no texto já referido: “O objetivo declarado desse movimento seria, então, fazer a síntese de toda a experiência poética modernista, de Whitman ao Futurismo, incluindo Teixeira de Pascoaes.”
 
Resta, o Interseccionismo, cujo desenvolvimento se opera em 1914 como um processo de composição inspirado pelo geometrismo cubista e os dois ismos anteriores. Mário de Sá-Carneiro chega a designar o que poderíamos chamar de movimento estético como o paulismo a sério; Pessoa diz ser um quase futurismo ou uma variante portuguesa do futurismo europeu. Do poeta, o texto que se torna paradigma na designação deste ismo é “Chuva oblíqua”, um poema escrito pelo ortônimo para fazer frente ao seu apagamento ou dissolução percebidos no instante de aparição definitiva dos heterônimos, constando um deles, Alberto Caeiro, com obra pronta.  
 
Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis constituem o resultado de uma consciência da fragmentação ou daquele trabalho de ficcionalização aparecido desde a infância e continuado com autores que escreviam em inglês e francês. Richard Zenith fala sobre dois jornalistas portugueses inventados por Pessoa na sua adolescência — Dr. Pancrácio e Gaudêncio Nabos — e Vicente Guedes, o primeiro a escrever extensamente em português. Parece sedutora a atitude criativa do poeta, mas a crítica talvez esteja enredada demais nela ao ponto de elastecer ao limite a noção de heteronímia descrita por Fernando Pessoa, quem, propriamente reconheceu a variedade de figuras criadas, mas registrou no campo dos heterônimos apenas os três citados na abertura deste parágrafo.
 
É que os três heterônimos não são apenas entes enunciadores com dicção distinta do seu autor, mas formam um todo coerente no que se refere, a uma consciência acerca do mundo e das coisas. Isto é, são individualidades. “Forma cada uma uma espécie de drama”, assim observa o próprio Fernando Pessoa na “Tábua bibliográfica”, publicada na edição n.17 da revista Presença:
 
“Alberto Caeiro, que se tem por nascido em 1889 e morto em 1915, escreveu poemas com uma, e determinada, orientação. Teve por discípulos — oriundos, como tais, de diversos aspectos dessa orientação — aos outros dois: Ricardo Reis, que se considera nascido em 1887, e que isolou naquela obra, estilizando, o lado intelectual e pagão; Álvaro de Campos, nascido em 1890, que nela isolou o lado por assim dizer emotivo, a que chamou “sensacionista”, e que — ligando-o a influências diversas, em que predomina, ainda que abaixo da de Caeiro, a de Walt Whitman — produziu diversas complicações, em geral de índole escandalosa e irritante, sobretudo para Fernando Pessoa, que em todo o caso não tem remédio senão fazê-las e publicá-las, por mais que delas discorde. As obras destes três poetas formam, como se disse, um conjunto dramático; e está devidamente estudada a entreacção intelectual das personalidades, assim como as suas próprias relações pessoais. Tudo isto constará de biografias a fazer, acompanhadas, quando se publiquem, de horóscopos e, talvez, de fotografias. É um drama em gente, em vez de em actos. (Se estas três individualidades são mais ou menos reais que o próprio Fernando Pessoa — é problema metafísico, que este, ausente do segredo dos Deuses, e ignorando portanto o que seja realidade, nunca poderá resolver.)
 
Fernando Pessoa publicou, ortonimamente, quatro folhetos em verso inglês: Antinous e 35 Sonnets, juntos, em 1918, e English Poems I-II e English Poems III, também juntos em 1922. O primeiro poema do terceiro destes folhetos é a refundição do “Antinous” de 1918. Publicou, além disto, em 1923, um manifesto, Sobre Um Manifesto de Estudantes, em apoio de Raúl Leal, e, em 1928, um folheto Interregno — Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal, que o governo consentiu que se editasse.
 
Nenhum destes textos é definitivo. Do ponto de vista estético, o autor prefere, pois, considerar estas obras como apenas aproximadamente existentes. Nenhum escrito heterónimo se publicou em folheto ou livro.”
 
Tudo isto forma uma rede complexa, rica e que sempre nos arrastará para aquelas dimensões nem sempre reparadas sobre a literatura. Mais que passatempo é uma dimensão fascinante da nossa capacidade inventiva e constitui outro nível talvez mais interessante que esta realidade que insistimos tratar por verdade definitiva. O poeta morreu a 30 de novembro de 1935, em Lisboa. Mas, será?


Notas:
 
* Este texto foi revisto em 2017, por isso a possibilidade de citação ao texto em referência. Trata-se de um livro editado três anos antes em Portugal pela Assírio & Alvim.
 

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Mortes de intelectual

16 + 2 romances de formação que devemos ler