Sobre “As vinhas da ira”, de John Steinbeck
Os tempos da
ira
Por Luisgé
Martín
Uma família
se vê obrigada a abandonar sua casa, despejada pelo banco, e viaja para outro
lugar em busca de uma via melhor. Ao final da travessia, essa família descobre
que onde chegaram não é um paraíso; seus habitantes lhe insultam e lhe rejeitam
como intrusos, não encontram uma casa onde morar, não há muito trabalho e os salários
são tão miseráveis que não permitem que vivam com dignidade: “Imagine que
você precisa de gente para um serviço qualquer e que só aparece um homem a
querer pegar nesse serviço. Então você tem de lhe pagar o que ele exigir. Mas
se, em vez de um, aparecerem cem homens... (...). Suponha que há cem homens a
querer esse emprego. Esses cem homens têm filhos e os filhos têm fome. Suponha
que uma moeda de dez centavos chega para comprar qualquer coisa aos pequenos. E
são cem homens. Você oferece-lhes uma tuta e meia e vai ver: matam-se uns aos
outros para ganhar essa ninharia. Sabe quanto me pagaram no último trabalho que
tive? Quinze centavos à hora. Dez horas por um dólar e meio, e a gente não pode
pernoitar na fazenda”.
Há algum
romance escrito recentemente, em qualquer língua, que descreva com tanta precisão
o mundo em que vivemos, os êxodos migratórios e a devastação laboral derivada
da crise econômica de 2008? Provavelmente, não. Esta fala de nós, de nossa
sociedade, de nossos dias, mas foi escrita em 1939 por John Steinbeck. As vinhas da ira é um dos grandes
romances políticos da história da literatura e preserva, além disso, todo seu
vigor narrativo: depois de lê-la, depois de ler Os irmãos Karamazov ou Cem
anos de solidão, alguém tem a sensação de que lhe passou um trem por cima.
Não se trata
de um romance ideológico. Embora tenha sido censurada, queimada publicamente e
qualificada de manifesto comunista, só difunde o que predicam a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, os Evangelhos e qualquer livro de paz: a
dignidade humana e a justiça social. Seus heróis épicos são seres cordiais e
trabalhadores. Buscam um emprego com o qual possam alimentar-se e pagar uma
habitação humilde.
Três anos
antes de publicar o romance, Steinbeck havia realizado para o The San Francisco News uma série de crônicas
magistrais sobre os Estados Unidos da Grande Depressão, reunidas logo no volume
The harvest gypsies – On the road to The
grapes of wrath (veja segunda parte do texto). A realidade que o autor
conheceu naquela tarefa jornalística foi a matéria-prima para As vinhas da ira: fatos históricos,
personagens de carne e osso, misérias verdadeiras.
Há, sem
dúvida, no romance algo que hoje continua sendo realmente subversivo: o
conhecimento de que em determinadas circunstâncias a violência é a única maneira
de alcançar a justiça ou de seguir lutando por ela. O título é tomado dessa
passagem reveladora: “nos olhos dos famintos há uma ira crescente. Nas almas
das pessoas, as vinhas da ira estão engrossando e ficando mais pesadas, ficando
mais pesadas para a vindima”. Tom Joad, o jovem protagonista que Henry Fonda
deu rosto no filme de Jonh Ford, esteve preso por um homicídio e volta a matar
agora, num instante de cólera, um guarda violento que protege os interesses dos
rios. Steinbeck – seu discurso moral – não o condena. O leitor tampouco, pois
compreende que, no mundo nada irreal do romance, essa é a única via que resta
aos necessitados para defender-se.
As vinhas da ira tem um desfecho
prodigioso que mescla o horror e a esperança: a filha mais velha da família
Joad, que por suas péssimas condições de vida acaba de dar a luz a um bebê
morto, amamenta com seu leite um homem que está agonizando de fome. Todas as
grandezas e as desventuras da natureza humana num só gesto simbólico.
As origens de As vinhas da ira
Por Luis Matias López
John
Steinbeck escreveu no verão de 1936, a pedido do jornal The San Francisco News sete reportagens sobre a emigração na
Califórnia de trabalhadores rurais do Meio Oeste arruinados por uma seca bíblica.
Se As vinhas da ira (escrita em 1939) é a
obra do Prêmio Nobel de Literatura estadunidense que melhor encarna sua preocupação
social, The harvest gypsies – On the road
to The grapes of wrath (Os ciganos da
colheita – na estrada para As vinhas da ira, tradução livre) pode se
considerar sua versão em miniatura. São reportagens escritas com um estilo seco
e claro, que permitem olhar algo mais sobre o romance o já por ele evidenciado.
Colocam em evidência que Steinbeck bebeu diretamente, não apenas de sua própria
experiência (foi trabalhador na lavoura quando jovem), mas das personagens e
dos caos reais que conheceu para escrever estes textos jornalísticos, que mesmo
assim, não perdem o tônus da boa literatura. O futuro ganhador do Prêmio Nobel
de 1962 já conhecia o sabor do êxito depois da aparição de Boêmios errantes, em 1935. E no ano seguinte, pouco antes de
elaborar as reportagens que publicou em Luta
incerta, onde relatava uma greve de trabalhadores numa fazenda da
Califórnia.
O Tom Joad
protagonista de As vinhas da ira pode
ser qualquer um (ou mescla de vários) daqueles milhares de imigrantes de
Oklahoma, Kansas ou Texas, que ficaram conhecidos como okies, que perderam suas terras pela Grande Depressão, as catastróficas
tempestades de areia que destruíram as terras de cultivo e a voracidade dos
bancos. Steinbeck os conheceu enquanto registrava-os para suas reportagens com
a ajuda de Tom Collins, diretor de um acampamento de refugiados (inspirador, é
claro, do Jim Rawley, de As vinhas...)
no qual tratava esses “homens da colheita” como seres humanos. Mas, além de
seus limites, os okies eram
considerados como sujos e ignorantes, bestas de carga das que não se podia
confiar porque eram vistos como depreciadores e maltrapilhos impunes.
"Mãe imigrante". Dorothea Lange. |
A
Califórnia, o paraíso da fruta e do mel, a terra prometida para aqueles
desterrados havia sido já o destino de milhares de imigrantes chineses,
filipinos e mexicanos levados para o trabalho forçado e que depois terminaram
expulsos quando começaram a dar mostras de rebelar-se ou, talvez nem tanto,
porque queriam organizar-se para defender seus direitos.
Era fácil
olhar para outro lado quando as vítimas não eram estadunidenses de puro sangue.
Mas ser branco e cidadãos dos Estados Unidos não são salvaram os okies, que também tiveram que suportar salários
de miséria, condições sub-humanas de vida, ódio e marginalização. Isso foi o
que Steinbeck registrou por escrito, primeiro em reportagens depois em romance,
e o que Woody Guthrie cantou depois de subir com sua guitarra num trem rumo à Califórnia.
The harvest gypsies quando editado em
livro veio com uma série de fotografias da época, a maioria delas de Dorothea Lange,
contratada especialmente por uma agência do Governo para registrar em imagens
esse êxodo sem precedentes. Mostram acampamentos improvisados, raquíticos,
grupos de famílias e cenas cotidianas de um drama fora do comum. A imagem que
chamou de “Mãe imigrante” se converteu num símbolo da Grande Depressão.
* Esta é uma versão livre para "Los tiempos de la ira" e "El origen de Las uvas de la ira", publicados no jornal El país.
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