Júlio Dinis, romances de transição



Depois das novelas de amor passional de Camilo Castelo Branco eis que surge em território português uma série de romances em que os traços do sentimento amoroso eram outros. É o período ainda da estética romântica, mas que a crítica literária classifica como transitório para outras manifestações literárias. A terceira geração. Nos romances desta leva já havia a predominância de traços do realismo, estética que se consolidaria mais tarde com a obra de Eça de Queirós. Desta leva de romances, destaque-se a de Júlio Dinis.

Júlio Dinis nasceu no Porto. O ano era o de 1839. Cursou Medicina e foi professor universitário na Escola Médico-Cirúrgica da cidade natal até quando descobriu que estava com tuberculose. Nessa época vai morar em Ovar, depois na Ilha da Madeira até retornar ao Porto. Apesar de ter vivido pouco (Dinis morreu em 1871) deixou uma obra que palmilha diversos gêneros: do teatro à crítica literária, da poesia à prosa (conto e romance).

Seus romances apresentam o que a crítica chama de indícios de uma aproximação entre subjetividade ultra-romântica e a realidade que inspirou o autor a escrever. Massaud Moisés lembra que Júlio foi profundo leitor dos romancistas ingleses Richardson, Fielding, entre outros, graças à educação britânica, uma vez que sua mãe era de ascendência irlandesa e inglesa; além disso, teve uma formação de natureza cientificista e positivista; e, por fim, uma contaminação pela leitura de Os contos do Tio Joaquim, de Rodrigo Paganino, quando esteve em Ovar.

Exceto Uma família inglesa, uma risonha e mais autobiográfica análise da burguesia do Porto, os demais romances se passam no campo. A natureza, sobretudo aquela intocada pela mão do homem, é sempre o remansoso cenário para o desenrolar macio de vidas desambiciosas e tranquilas, guiadas por enraizadas certezas na bondade humana e numa ordem de justiça de extração divina. Respira-se em tudo um ar de saudável horacionismo, de elogio à Rousseau das virtudes ingênuas e primitivas, longe do contato amolecedor da civilização. Nessa paisagem, paradoxalmente vista com o otimismo de um homem encantado com a existência, cheio de alegria de viver, Júlio Dinis situa um emaranhado caos amoroso, como pedia a própria concepção do romance oitocentista, mas que flui mansamente, velado, sem grandes sobressaltos, gestos teatrais ou os paroxismos que já conhecemos em Camilo. Em lugar da obsedante paixão camiliana, o romancista coloca o amor, sentimento mais da alma que dos sentidos, que não arrasta nem à morte nem à desesperança; ao contrário, conduz a objetivos de espiritual e moralizante beleza, uma vez que os namorados se entregam ao jogo amoroso guiados por inabaláveis princípios éticos, que ditam apenas sentimentos puros e espontâneos, sublinha Moisés.

Cena de As pupilas do senhor reitor, novela produzida pelo SBT na década de 1970 com base em texto de Júlio Dinis

Quem não lembra, ao ouvir falar desta característica literária sua, do romance As pupilas do senhor reitor? Pois bem. Aqui,  o leitor tem diante de seus olhos um romance em que o espaço campesino de uma aldeia portuguesa é figura constante. É o espaço ideal onde transcorrem as cenas da narrativa. Idealizado também são as personagens Margarida e Daniel, os tipos populares, como as beatas fofoqueiras ou a família interesseira do dono da venda. Embora, tenha sido este o texto no qual melhor concentrou seu dote de ficcionista. Com este romance o autor deixou claro que, além de defender as tradições – simbolizadas, na obra, pela oposição campo-cidade, em que o primeiro é sempre exaltado –, privilegiou a ideia de progresso e de mudança, desde que a fusão entre tradicional e novo preservasse aqueles que considerava os “verdadeiros” valores da sociedade portuguesa – a retidão de caráter, a sinceridade, o trabalho, o auxílio aos mais necessitados.

No Brasil, o livro de Júlio Dinis serviu de matéria para duas novelas exibidas na TV aberta: entre 1970 e 1971, Lauro César Muniz escreveu e Dionísio Azevedo e Nilton Travesso dirigiu para a Rede Record; uma nova revisão do texto transformou a obra para o SBT com exibições entre 1994 e 1995, em 2006 e em 2007, nos últimos anos de forma compactada. A forte aceitabilidade pelo público da narrativa de As pupilas... demonstra que o escritor português acertou na dose de sua composição ao dar forma a um lirismo comovente, de traço romântico e, claro, entre o melhor já produzido na ficção romântica portuguesa junto com Camilo Castelo Branco.


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