Gregório de Matos, o Boca do Inferno




Esta cidade acabou-se, pensou Gregório de Matos, olhando pela janela do sobrado, no terreiro de Jesus. “Não é mais a Bahia. Antigamente, havia muito respeito. Hoje, até dentro da praça, nas barbas da infantaria, nas bochechas dos granachas, na frente da forca, fazem assaltos à vista.”

Veio à sua mente a figura de Góngora y Argote, o poeta espanhol que ele tanto admirava, vestido como nos retratos em seu hábito eclesiástico de capelão do rei: o rosto longo e duro, o queixo partido ao meio, as têmporas raspadas até detrás das orelhas. Góngora tinha-se ordenado sacerdote aos cinqüenta e seis anos. Usava um lindo anel de rubi ao dedo anular da mão esquerda, que todos beijavam. Gregório de Matos queria, como o poeta espanhol, escrever coisas que não fossem vulgares, alcançar o culteranismo. Saberia ele, Gregório de Matos, escrever assim? Sentia dentro de si um abismo. Se ali caísse, aonde o levaria? Não estivera Góngora tentando unir a alma elevada do homem à terra e seus sofrimentos carnais? Gregório de Matos estava ali, no lado escuro do mundo, comendo a parte podre do banquete. Sobre o que poderia falar? Teria sido bom para Gregório se tivesse nascido na Espanha? Teria sido diferente?

(Ana Miranda, Boca do inferno, fragmento)


Neste seu livro, Boca do inferno, Ana Miranda recria a figura do baiano Gregório de Matos numa cena, no mínimo interessante: o poeta a pensar em Luis Góngora, poeta espanhol, que simbolizava, para ele, o exemplo máximo de controle sobre a composição poética, o culteranismo, um artista que tenta “unir a alma elevada do homem à terra e seus sofrimentos carnais”, numa clara alusão ao dualismo barroco. Diante de tal cena, poderíamos fazer a seguinte reflexão indagando o que teria acontecido a Gregório se, em vez de baiano, tivesse sido espanhol. Certamente, diriam nós críticos, estaríamos diante de um poeta diferente, menos ocupado com a crítica aos desmandos políticos – já tão comuns por cá naquela época. Crítica que lhe valeu o apelido de “Boca do inferno”. E, teríamos um poeta mais voltado para o desenvolvimento de poemas cultistas.

Foi em Salvador, no ano de 1636, que nasceu Gregório de Matos Guerra. Como seus pais eram pessoas de posses, garantiram ao filho a melhor educação disponível na colônia, representada na época pelo Colégio dos Jesuítas de Salvador. A sequência natural na sua formação, como filho de pais abastados, foi seguir, aos catorze anos, para a Metrópole, onde deveria estudar Leis. Tornar-se advogado. Profissão em voga na época.

E Gregório obteve o diploma de Direito pela Universidade de Coimbra, em 1661. Neste mesmo ano casou-se com D Michaella de Andrade. O casal, entretanto, não teve filhos. No exercício da profissão, Gregório permaneceu em Portugal, chegando a ocupar o cargo de juiz no Alentejo e em Lisboa. O poeta, já viúvo, voltou à cidade natal em 1681. Vinha ocupar um cargo na arquidiocese baiana. Tornou a se casar, teve filhos, mas o que o seduzia era a vida boêmia.

Os versos críticos e mordazes direcionados a membros da arquidiocese e a políticos valeram-lhe, além do apelido de “boca do inferno”, o desagrado do governador da Bahia, que o baniu para Angola, em 1694. Lá permaneceu apenas um ano, voltando ao Brasil e fixando residência no Recife, onde faleceu em 1696.

Deixou uma obra multifacetada, produto de uma carreira literária descontínua; conforme destaca Segismundo Spina militou por todos os setores da poesia: a sátira, a lírica profana e religiosa, a encomiástica. “Em síntese, os temas, as situações e as atitudes que definem o poeta satírico dentro dos quadros da atmosfera barroca do século XVII poderiam ser assim esquematizados: (a) a marginalidade em que viveu, nos últimos lustros de sua existência, que alternaram entre as solicitações terrenas e a procura de Deus para solução de seus problemas interiores; (b) uma consciência nítida do pecado, o consequente arrependimento, noção da penitência, e a esperança de redenção das culpas; (c) a associação do burlesco ao sagrado, que Afrânio Peixoto interpretou como sendo o humour do poeta: num ato de contrição; (d) o prazer de impressionar, o visualismo gesticulatório e o quiproquó com as coisas sagradas; (e) a humanização do sobrenatural; (f) a lição tridentina de que o homem é pó; (g) a sensação de instabilidade da fortuna, da insignificância das vaidades humanas, da fugacidade do tempo - que deve ser aproveitado; (h) e, sobretudo, o sentido dilemático da vida, decorrente desse duelo entre a existência que delira na truanice, na obscenidade, no sensualismo declarado, no gozo dos valores mundanos criados pela Renascença, e o reverso da medalha - que busca a Deus nas horas solitárias de reflexão da vida interior.”

Seguindo esse itinerário, a Academia Brasileira de Letras reuniu e publicou seis volumes da sua assim organizados: Volume I: Obra Sacra; II: Obra Lírica; III: Obra Graciosa; IV e V: Obra Satírica; e VI: Obra Última. A maior notoriedade do poeta escapa no que foi classificado pela crítica como poemas líricos, poemas sacros e poemas satíricos.


*O texto base para esta post está em ABAURRE, Maria Luiza; PONTARRA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Português: língua e literatura. São Paulo: Moderna, 2000.

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