Cruz e Sousa



“Tem poetas que interessam mais pela obra, artistas cuja peripécia pessoal se reduz a um trivial variado, sem maiores sismos dignos de nota, heróis de guerras e batalhas interiores, invisíveis a olho nu. Tem outros, porém, cuja vida é, por si só, um signo.” Assim inicia Paulo Leminski a apresentação que faz da vida de Cruz e Sousa, considerado, desde cedo um importante nome da poesia brasileira pelos opositores do parnasianismo e que dividiu a opinião crítica desde sua dupla estreia literária, com a publicação dos livros Broquéis e Missal, em 1893.

Ivan Teixeira esclarece que críticos como José Veríssimo e Araripe Júnior foram insensíveis ao modelo de poesia desenvolvido pelo poeta, estavam, provavelmente tomados dos modelos poéticos da chamada nova geração. Dos nomes conhecidos da época, Teixeira cita que Adolfo Caminha, impulsionado talvez por dividir o mesmo teto da casa editorial — no mesmo ano de 1893, Magalhães & Cia. também publica A normalista — escreveu algum elogio ao poeta injustiçado; e Sílvio Romero chega a designá-lo “o rei da poesia sugestiva.”

Filho de escravos alforriados, Cruz e Sousa nasceu em Nossa Senhora do Desterro — atual Florianópolis — em 1861. O autor teve uma vida conturbada. Uma tragédia, pode-se dizer. Essa tragédia pessoal  agrava-se a partir do seu casamento. 

A esposa Gavita Gonçalves teve quatro filhos e todos morreram muito cedo vitimados pela tuberculose. Com a morte dos filhos, ela enlouqueceu e permaneceu internada por longos períodos. Não tarda é também vitimado pela tuberculose, na pequena cidade mineira de Sítio, para onde se mudara em busca de novos ares. Conta-se que o corpo foi transportado para o Rio de Janeiro em um vagão de animais.

Não obstante uma biografia marcada pela miséria e pela dor, a produção literária de Cruz e Sousa o colocou não apenas entre os grandes simbolistas, mas quem estabeleceu as diretrizes desse movimento na literatura brasileira. Ivan Teixeira observa que Broquéis introduziu entre nós a ideia de poesia pura, “marcada pelo deliberado abandono do significado explícito e pelo apego à sugestão vaga e insinuante”, qualidades opostas ao modelo parnasiano; “uma poesia voltada para si mesma, de força centrípeta e implosiva, em que se valorizava sobretudo o choque interno dos signos, das imagens e dos ritmos imprevistos.”

Hoje chegam a compará-lo a Mallarmé por sua qualidade de um autor que pensa “o poema como um organismo, uma montagem viva em que o meio é a própria mensagem, como na música”. Impressiona a crítica em sua poesia pela profundidade filosófica e a angústia metafísica, temas que nos livros posteriores aos de estreia, são oriundos de sua sofrida experiência pessoal.

Mas, se o traço biográfico aponta nos poemas mais tardios, o que se destaca na obra publicada em vida de Cruz e Sousa é, como observa Roger Bastide, a maneira como o poeta transforma toda a herança recebida de fora, entre elas, a poética de Mallarmé, a filosofia materialista e pessimista oposta ao platonismo do poeta francesa aprendida das leituras de Haeckel, Büchner, Schopenhauer. Encalacrado entre um limite e outro, a saída será, conforme Davi Arrigucci Júnior, “ora pelo prazer dos sentidos, ora pela negação da forma perfeita, por meio da fealdade, mergulhando, por fim com grande originalidade, no mundo da noite e do sonho, onde a dissolução dos limites e contornos sugere, por entre nebulosidades, uma realidade diferente: a entrevista realidade essencial.”

Podemos encontrar, de modo recorrente, em sua obra, a tematização do amor, em suas vertentes do erotismo, da lascívia e da idealização, do mistério, das sensações, da angústia, da dor de existir, do conflito entre a carne e o espírito. Em seu vocabulário poético predominam, de modo obsessivo, termos associados à cor branca — névoas, alvas, brumas, lírios, neve, palidez, lua etc. — com os quais modelou uma atmosfera vaga, evanescente, sensual, espiritual, extravagante, mística ou pessimista, como encontramos em Broquéis.

Segundo Ivan Teixeira o cerne da poesia de Cruz e Sousa é o da percepção metafórica. “Ele não apreende o mundo senão pela transfiguração dos sentidos, pelo envolvimento sensorial com a realidade. Nessa relação, os elementos mais díspares da natureza se associam em poderosas transformações. Sua poesia é uma espécie de espelho no qual a imagem do mundo sempre se reflete distorcida. Sua sensibilidade parece uma lâmina delicada que se exacerba ao mais tênue estímulo exterior.”

Cruz e Sousa publicou em vida, além de Broquéis e Missal, Tropos e fantasias, que repete o modelo do poema em prosa adotado no último livro. Trata-se de uma obra escrita com o amigo e também escritor Virgílio Várzea. A permanência da sua obra deve-se a sua qualidade, evidentemente, mas graças ainda ao esforço daqueles que sempre encontraram nela os índices que a colocam entre as principais obras da nossa literatura, ignorando toda campanha de silenciamento mantida em parte pelas estruturas raciais de um país de matriz escravocrata.

Entre esses nomes, encontramos Nestor Vítor. É ele quem cuida dos títulos póstumos Evocações (1898), Faróis (1900) e dos Últimos sonetos (1905). Ainda em 1924, é dele a iniciativa de organizar uma edição com todas as obras de Cruz e Sousa.

Ao trabalho de Nestor Vítor, soma-se o cuidado de Andrade Muricy, um dos nomes mais importantes quando o assunto é a poesia simbolista brasileira; em 1961, ele organiza a edição do centenário que trouxe a público inúmeros textos inéditos, mantendo o interesse das novas gerações pela obra poética de Cruz e Sousa.


Os textos citados
ARRIGUCCI JÚNIOR, Davi. Outros achados e perdidos. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
BASTIDE, Roger. A poesia afro-brasileira. São Paulo: Martins, 1943. 
LEMINSKI, Paulo. Cruz e Sousa: o negro branco. São Paulo: Brasiliense, 1983.
TEIXEIRA, Ivan. Cem anos de Broquéis — sua modernidade. In: SOUSA, Cruz. Broquéis. São Paulo: Edusp, 1994 (Edição fac-similar por ocasião do centenário da obra).

 

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