Há romances ruins de quem escreve romances bons?
Por Pedro Fernandes
Já postei neste blog algumas notas acerca de A Caverna (2000). Aos que me conhecem ou me leem vez por outra neste espaço, ou mesmo aqueles que passam de relance por aqui, sabe que tenho me tornado leitor da obra de José Saramago há alguns anos e parte disso tem sido registrado por aqui. Ultimamente, tenho atualizado essas leituras com uma certa velocidade, principalmente depois que escrevi minha monografia de fim de graduação intitulada O Ser em O conto da ilha desconhecida Diante do Ser Sartriano, em agosto de 2008, sob orientação do professor e poeta Leontino Filho. E agora que me dedico a uma nova fase acadêmica, a do mestrado, não é mais que minha obrigação cumprir com essa necessidade uma vez que a obra do escritor português permanece no centro de interesse e nas minhas preocupações de pesquisador.
Essas impressões que vou construindo a cada leitura dos livros do escritor português – e não só dos seus livros, mas de outros livros que mantenham relações com sua literatura ou de outros autores que leram e escreveram sobre sua obra – têm o intuito de distingüir melhor os aspectos de funcionamento de um projeto literário.
Pois bem, A Caverna, disse nas primeiras notas que publiquei aqui, e O Ano de 1993, quando toquei no assunto, estão, para crítica que tenho lido, entre as obras mais mal-vistas. Sobre o segundo livro já saí em sua defesa aqui depois da leitura de um artigo do professor de Teoria da Literatura Alcir Pécora, editado no jornal Folha de São Paulo. Mas, não cheguei a respostar nenhum texto sobre o romance de 2000; o caso é que não deixei de pontuar também algumas alfinetadas nas referidas notas.
É sobre isso que pretendo tratar nesse retorno ao romance A Caverna. Faço isso não porque tenha a “honra” minha maculada quando leio uma crítica que se preocupa em apontar os desacertos do trabalho de um escritor que elegi profícuo ao estudo, e que antes disso, não escondo de ninguém, tenho com estima. Não me sinto assim, o de honra manchada, nem com meus próprios textos, quando estes não são benquistos, que dirá sentir-me para com textos alheios e de um escritor que de mais a mais já conquistou seu espaço na galeria dos universais. Faço por outras razões, como perceberá o leitor que tiver a curiosidade de deslizar sua leitura até o fim da post.
Quem se põe a fazer a leitura integral da obra de um escritor, no sentido mais sutil que cabe à palavra integral, deve, evidentemente, construir suas opiniões acerca de cada texto lido e das relações mantidas conjunto da obra. A Caverna não teve, pois, para mim, o mesmo impacto que os outros romances do escritor tem me causado, como os já conhecidos da maioria do público Ensaio sobre a Cegueira, Memorial do Convento, O Evangelho segundo Jesus Cristo (o primeiro que li e me fez decidir pela jornada de agora e também um dos meus preferidos), O Ano da Morte de Ricardo Reis etc. Entretanto, me restrinjo a dizer acerca desse romance apenas isso: não teve o mesmo “impacto que outros romances do escritor tem me causado”.
O livro estabelece clara alusão ao mito da caverna de Platão – está precisado no título, passando pela epígrafe, “Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros, São iguais a nós”, ao conteúdo e até o desfecho da narrativa, “Brevemente, abertura ao público da caverna de Platão, Atracção exclusiva, única no mundo, compre já a sua entrada”. Isto é, o autor não esconde o diálogo com o texto antigo em momento algum.
Mas, ainda entendo que é graças às obras literárias, ruins ou boas, o papel do crítico para ser essencial, depende delas, afinal de contas, é desse trabalho, dos escritores, dos artistas etc., que parte esse outro trabalho de criticar. E, por isso mesmo, o crítico deve saber “dosar” os limites da sua crítica. A escritores como José Saramago, reconhecidos pela significação da sua obra, ainda mais. Uso o título do Nobel para dizer que este escritor (e qualquer outro sem este galardão) não merece perdão caso tenha cometido algum lapso em sua produção literária. Porque, como o objeto feito na olaria de um Cipriano Algor, toda obra pode sair bem-feita ou não da forja do artista. Também é fato que não existe o autor de somente obras-primas. E, por vezes, são as justamente as obras menores que nos levam a reconhecer as demais como maiores.
E cito mesmo o nome Machado de Assis. Apesar de não ser um especialista na obra do brasileiro não vejo com bons olhos os romances da sua chamada leva romântica, como Iaiá Garcia, entretanto os assim designados realistas (há sempre que se questionar essas limitações), como Dom Casmurro ou Memórias Póstumas de Brás Cubas, para ficarmos apenas em dois textos, já nos diz sobre as significações necessária e merecida para o lugar que o esse escritor ocupa nas letras brasileiras, latino-americanas e universal. É suficiente para que minha visão crítica acerca daqueles romances de sua outra fase seja atenuada. É como se dissesse de mim para mim: sim, podem ser ruins, mas e daí, ele escreveu isso! Não é o caso nem de Saramago, nem de Machado de Assis, mas em muitas situações eu prefiro (sou partidário mesmo na prática) o silêncio a balbúrdia. A questão, volto, está naquilo que mais lhe apetece ou não. E sobre nomes já eleitos a ideia que fica é que o crítico, sempre à sombra do escritor, muitas vezes parece querer mesmo é aparecer às custas de uma fama pronta. E, particularmente, a figura do crítico reclamão, ou do crítico que serve apenas no apontamento dos defeitos, tem para mim o mesmo tom purgante de uma obra ruim.
Nesse ínterim, lembro-me uma fala, creio que da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, numa determinada entrevista em que ela diz ter dado cabo a todos os seus romances de início de carreira por achá-los de qualidade inferior aos que havida publicado. Opção própria, mas creio que muita coisa boa dessa leva ao fogo tenha sido desperdiçada, entendendo que o escritor é, por muitas vezes, severo demais para com ele mesmo – talvez até por peso de quem? Tome como exemplo Joyce e seu Ulisses, ou ainda o próprio Saramago que renegou até o último instante o seu primeiro romance intitulado Terra do pecado. E até deve ser, se não, eles não seriam o que são – o próprio Joyce talvez não fosse quem é – entretanto, paga-se um certo preço – alto demais, me parece – por determinadas atitudes.
Quando digo que muita coisa boa em Lygia, por exemplo, tenha se perdido tomo como referência a variedade das descobertas que se vai fazendo ao longo dos anos de escritas do poeta Fernando Pessoa, umas mais surpreendentes que outras. Quis ele que se publicasse tudo? Talvez não. E o que seria de Franz Kafka sem a desobediência de seu amigo Max Brod?
Voltando A Caverna, de José Saramago, vejo este romance como um texto singelo, mas nada que venha ofuscar seu valor no âmbito do projeto literário desse escritor. Do contrário, nele se assiste um veio crítico dos mais agudos, uma vez que deparamo-nos com um narrador verdadeiramente saramaguiano, no sentido estrito da qualidade: um narrador dotado, inclusive, do mesmo veio ideológico, por que não assim dizer, daquele reconhecido como usual apenas ao escritor português, no entendimento de que o que se assiste é uma crítica viva ao atual sistema de domínio econômico/ social que temos adotado e isso tem sido a linha primordial e principal que demarca a obra e a opinião de José Saramago. É este um romance que nos desafia a voltar na história e reconhecer a vivacidade do pensamento grego na compreensão do seu tempo. Mas, sobretudo, do agora, cada vez mais escorregadio e fundamental. E isso não é um valor em-si da obra?
José Saramago, sempre acusado de ter escrito alguns livros que não deviam sequer sido publicados. |
Já postei neste blog algumas notas acerca de A Caverna (2000). Aos que me conhecem ou me leem vez por outra neste espaço, ou mesmo aqueles que passam de relance por aqui, sabe que tenho me tornado leitor da obra de José Saramago há alguns anos e parte disso tem sido registrado por aqui. Ultimamente, tenho atualizado essas leituras com uma certa velocidade, principalmente depois que escrevi minha monografia de fim de graduação intitulada O Ser em O conto da ilha desconhecida Diante do Ser Sartriano, em agosto de 2008, sob orientação do professor e poeta Leontino Filho. E agora que me dedico a uma nova fase acadêmica, a do mestrado, não é mais que minha obrigação cumprir com essa necessidade uma vez que a obra do escritor português permanece no centro de interesse e nas minhas preocupações de pesquisador.
Essas impressões que vou construindo a cada leitura dos livros do escritor português – e não só dos seus livros, mas de outros livros que mantenham relações com sua literatura ou de outros autores que leram e escreveram sobre sua obra – têm o intuito de distingüir melhor os aspectos de funcionamento de um projeto literário.
Pois bem, A Caverna, disse nas primeiras notas que publiquei aqui, e O Ano de 1993, quando toquei no assunto, estão, para crítica que tenho lido, entre as obras mais mal-vistas. Sobre o segundo livro já saí em sua defesa aqui depois da leitura de um artigo do professor de Teoria da Literatura Alcir Pécora, editado no jornal Folha de São Paulo. Mas, não cheguei a respostar nenhum texto sobre o romance de 2000; o caso é que não deixei de pontuar também algumas alfinetadas nas referidas notas.
É sobre isso que pretendo tratar nesse retorno ao romance A Caverna. Faço isso não porque tenha a “honra” minha maculada quando leio uma crítica que se preocupa em apontar os desacertos do trabalho de um escritor que elegi profícuo ao estudo, e que antes disso, não escondo de ninguém, tenho com estima. Não me sinto assim, o de honra manchada, nem com meus próprios textos, quando estes não são benquistos, que dirá sentir-me para com textos alheios e de um escritor que de mais a mais já conquistou seu espaço na galeria dos universais. Faço por outras razões, como perceberá o leitor que tiver a curiosidade de deslizar sua leitura até o fim da post.
Quem se põe a fazer a leitura integral da obra de um escritor, no sentido mais sutil que cabe à palavra integral, deve, evidentemente, construir suas opiniões acerca de cada texto lido e das relações mantidas conjunto da obra. A Caverna não teve, pois, para mim, o mesmo impacto que os outros romances do escritor tem me causado, como os já conhecidos da maioria do público Ensaio sobre a Cegueira, Memorial do Convento, O Evangelho segundo Jesus Cristo (o primeiro que li e me fez decidir pela jornada de agora e também um dos meus preferidos), O Ano da Morte de Ricardo Reis etc. Entretanto, me restrinjo a dizer acerca desse romance apenas isso: não teve o mesmo “impacto que outros romances do escritor tem me causado”.
O livro estabelece clara alusão ao mito da caverna de Platão – está precisado no título, passando pela epígrafe, “Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros, São iguais a nós”, ao conteúdo e até o desfecho da narrativa, “Brevemente, abertura ao público da caverna de Platão, Atracção exclusiva, única no mundo, compre já a sua entrada”. Isto é, o autor não esconde o diálogo com o texto antigo em momento algum.
O romance conta a história de um oleiro,
Cipriano Algor, e o “drama” de ter os seus objetos rejeitados à compra pelo
Centro Comercial, espécie de grande shopping e condomínio habitacional de uma
cidade qualquer. Saramago continua praticando uma ficção da desidentificação com vistas a uma identificação universal, como faz no Ensaio sobre a Cegueira, por exemplo. Isto é, também nisso, o seu romance se filia ao formato do discurso de Platão: quer ser uma parábola, uma maneira de educar sobre uma questão mais abrangente e complexa. Como se prevê, o caso do escritor português é o de falar sobre a condição humana numa sociedade em que o modelo urbano se sobrepõe ao modelo ao rural, o industrial ao artesanal, o capitalismo ao socialismo.
Como efeito da decisão imposta a Cipriano Algor, o que leitor assiste é aquele conhecido êxodo da
personagem para o epicentro do Centro. Uma vez lá, dão-se os fenômenos de que
já conhecemos no mito de Platão até a descoberta do que seria um “fóssil”
pré-histórico da cena do referido mito: a aparência sobrepondo a essência, a imagem à realidade ou a sombra à imagem.
Ora, tudo isso é mesmo um tanto óbvio e o romance chega a assumir o temível tom do didatismo que se impôs na feitura do chamado romance social. Mas, ao reconhecer isso, volto ao que dizia: restrinjo-me a dizer que o romance me causou menos impacto que outros do escritor. Há obras literárias ruins. Disso sabemos. Mas, sabemos também que esse conceito é variado, pode me servir e não a outros; pode me servir agora e mudar depois. Esse é o movimento nas escalas de funcionamento dos interesses por uma obra de arte.
Ora, tudo isso é mesmo um tanto óbvio e o romance chega a assumir o temível tom do didatismo que se impôs na feitura do chamado romance social. Mas, ao reconhecer isso, volto ao que dizia: restrinjo-me a dizer que o romance me causou menos impacto que outros do escritor. Há obras literárias ruins. Disso sabemos. Mas, sabemos também que esse conceito é variado, pode me servir e não a outros; pode me servir agora e mudar depois. Esse é o movimento nas escalas de funcionamento dos interesses por uma obra de arte.
Mas, ainda entendo que é graças às obras literárias, ruins ou boas, o papel do crítico para ser essencial, depende delas, afinal de contas, é desse trabalho, dos escritores, dos artistas etc., que parte esse outro trabalho de criticar. E, por isso mesmo, o crítico deve saber “dosar” os limites da sua crítica. A escritores como José Saramago, reconhecidos pela significação da sua obra, ainda mais. Uso o título do Nobel para dizer que este escritor (e qualquer outro sem este galardão) não merece perdão caso tenha cometido algum lapso em sua produção literária. Porque, como o objeto feito na olaria de um Cipriano Algor, toda obra pode sair bem-feita ou não da forja do artista. Também é fato que não existe o autor de somente obras-primas. E, por vezes, são as justamente as obras menores que nos levam a reconhecer as demais como maiores.
E cito mesmo o nome Machado de Assis. Apesar de não ser um especialista na obra do brasileiro não vejo com bons olhos os romances da sua chamada leva romântica, como Iaiá Garcia, entretanto os assim designados realistas (há sempre que se questionar essas limitações), como Dom Casmurro ou Memórias Póstumas de Brás Cubas, para ficarmos apenas em dois textos, já nos diz sobre as significações necessária e merecida para o lugar que o esse escritor ocupa nas letras brasileiras, latino-americanas e universal. É suficiente para que minha visão crítica acerca daqueles romances de sua outra fase seja atenuada. É como se dissesse de mim para mim: sim, podem ser ruins, mas e daí, ele escreveu isso! Não é o caso nem de Saramago, nem de Machado de Assis, mas em muitas situações eu prefiro (sou partidário mesmo na prática) o silêncio a balbúrdia. A questão, volto, está naquilo que mais lhe apetece ou não. E sobre nomes já eleitos a ideia que fica é que o crítico, sempre à sombra do escritor, muitas vezes parece querer mesmo é aparecer às custas de uma fama pronta. E, particularmente, a figura do crítico reclamão, ou do crítico que serve apenas no apontamento dos defeitos, tem para mim o mesmo tom purgante de uma obra ruim.
Nesse ínterim, lembro-me uma fala, creio que da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles, numa determinada entrevista em que ela diz ter dado cabo a todos os seus romances de início de carreira por achá-los de qualidade inferior aos que havida publicado. Opção própria, mas creio que muita coisa boa dessa leva ao fogo tenha sido desperdiçada, entendendo que o escritor é, por muitas vezes, severo demais para com ele mesmo – talvez até por peso de quem? Tome como exemplo Joyce e seu Ulisses, ou ainda o próprio Saramago que renegou até o último instante o seu primeiro romance intitulado Terra do pecado. E até deve ser, se não, eles não seriam o que são – o próprio Joyce talvez não fosse quem é – entretanto, paga-se um certo preço – alto demais, me parece – por determinadas atitudes.
Quando digo que muita coisa boa em Lygia, por exemplo, tenha se perdido tomo como referência a variedade das descobertas que se vai fazendo ao longo dos anos de escritas do poeta Fernando Pessoa, umas mais surpreendentes que outras. Quis ele que se publicasse tudo? Talvez não. E o que seria de Franz Kafka sem a desobediência de seu amigo Max Brod?
Voltando A Caverna, de José Saramago, vejo este romance como um texto singelo, mas nada que venha ofuscar seu valor no âmbito do projeto literário desse escritor. Do contrário, nele se assiste um veio crítico dos mais agudos, uma vez que deparamo-nos com um narrador verdadeiramente saramaguiano, no sentido estrito da qualidade: um narrador dotado, inclusive, do mesmo veio ideológico, por que não assim dizer, daquele reconhecido como usual apenas ao escritor português, no entendimento de que o que se assiste é uma crítica viva ao atual sistema de domínio econômico/ social que temos adotado e isso tem sido a linha primordial e principal que demarca a obra e a opinião de José Saramago. É este um romance que nos desafia a voltar na história e reconhecer a vivacidade do pensamento grego na compreensão do seu tempo. Mas, sobretudo, do agora, cada vez mais escorregadio e fundamental. E isso não é um valor em-si da obra?
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