Algumas notas sobre Absalão! Absalão!, de William Faulkner



O papel semelhante ao bíblia com que o editor quis publicar Absalão! Absalão! não é senão a mensagem que revela ao leitor o caráter sagrado desta obra-mestra de William Faulkner; esse caráter é constituído por razões que estão além dos referentes bíblicos oferecidos pelo próprio romance e que se liga à excelência artística e ao estilo capaz de servir de influência a diversos autores de extrema grandiosidade, tal como Mario Vargas Llosa, António Lobo Antunes, Joyce Carol Oates, Gabriel García Márquez, Thomas Bernhard...

Absalão! Absalão! regressa ao universo de Faulkner das dinastias, de patriarcados em declínio, consciências atormentadas e atmosferas tão febris como asfixiantes do condado de Yoknapatawpha, depois de deixar-se cair na tentação do êxito comercial interessado em construir um Best-Seller e carregando as tintas em Santuário.  

Absalão! Absalão!, a história da perturbada ambição de Thomas Sutpen e da tragédia com que culmina a envenenada relação de ultrajes, incestos, efeitos nocivos, corrupção, receios racistas e sangue derramado entre Sutpen, seus filhos legítimos, Henry e Judith, e seu filho renegado, Charles Bon, uma trama labiríntica e inspirada no episódio bíblico de “Samuel” (que conta como Absalão, filho de Davi, mata seu irmão Amnom por ter se apaixonado por sua irmã Tamara), regressa ao estilo polifônico das narrativas apócrifas contrapostas num texto convertido em palimpsesto, os monólogos interiores tecidos com anacolutos e uma sintaxe desequilibrada pelas sinuosidades do pensamento e a presença de estruturas codificadas como versículos bíblicos, cartas, fórmulas do romance negro ou do folhetim vitoriano ou dos sermões, as dilatadas elipses e as subversões temporais que despontou de forma extraordinária em O som e a fúria.

A tessitura do texto é um emaranhado de vozes, uma intersecção de temporalidades diversas,; o leitor está diante uma narrativa marcada por narradores confusos que falam e pensam de uma só vez; em ocasiões transcreve-se a oralidade e com frequência a narração se abandona à verborragia e à oratória nascida de um duplo mecanismo de digressão e contradição; é este texto um hipertrofiado, cheio de jargões, de ecos, ambiguidades, justaposições, mudanças ortográficas que revelam outras tantas mudanças de voz, outros pontos de vista, abruptas e labirínticas hipotaxis e criações diversas de espécies linguísticas que nos assaltam quando tratamos de recapitular. Somos tomados pela trama de Sutpen, de sua megalômana mansão, pelos inóspitos ermos do espírito que atravessam ele e sua infortunada família. Isto é, as construções comuns à narrativa de Faulkner aqui só se ampliam.

Além do assassinato de Bon pelas mãos do seu irmão Henry, a trama de Absalão! Absalão! é urdida pelos discursos de Rosa, cunhada de Stupen, do seu vizinho Compson, do filho Quentin e de seu colega em Havard, Shreve; são recordações, imaginações, conjecturas que se mostram a um só tempo gerando uma espiral de distintas versões que dificultam o estabelecimento de um relato avalizado por algum princípio de autoridade. Mas, essa diversidade permite ao leitor que penetre no detetivesco e inquietante microclima moral criado por Faulkner; relato, ação, personagens, trama e peripécia parecem destinadas a desaparecer pela força da linguagem. Aqui está o melhor de Faulkner; do escritor que escreve pensando no processo próprio da escrita e não apenas no produto da história que escreve.

O leitor deve desfrutar dos nós textuais sem medo de não poder retroceder, pois o prazer da aventura do trajeto e não a satisfação da chegada é o que Faulkner espera que ele experimente. Absalão! Absalão! responde por uma retórica circular em que não existe início nem fim e em que de nada serve esperar pelas velhas leis de causa e efeito ou da lógica. Como assinala Mario Vargas Llosa em A verdade das mentiras sobre a manipulação dos dados da história por parte de seus narradores no estilo faulkneriano, todo romance se compõe de dados visíveis e de dados subtendidos. O narrador nunca nos diz tudo e às vezes nos despista: revela o que uma personagem faz mas não o que pensa ou o contrário. Assim, a história se ilumina e se apaga.

Que o leitor não trate de ordenar o texto para entendê-lo; é necessário perder-se no seu emaranhado para logo conseguir alcançar uma possibilidade do relato.

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