Camões, uma nova visão sobre o amor

Marte e Vênus. Carlo Saraceni

[Diotima*] Eis, com efeito, em que consiste o ceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: em começar o que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo. Nesse ponto da vida, meu caro, Sócrates, se é que em outro mais, poderia o homem viver, a contemplar o próprio belo. Se algum dia o vires, não é como ouro ou como roupa que ele te parecerá ser, ou como os belos jovens adolescentes, a cuja vista ficas agora aturdido e disposto, tu como outros muitos, contanto que vejam seus amados e sempre estejam com eles, a nem comer nem beber, se de algum modo fosse possível, mas a só contemplar e estar ao seu lado.

Que pensamos então que aconteceria, disse ela, se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, o nítido, puro, simples, e não repleto de carnes humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o próprio divino belo pudesse ele em sua forma única contemplar? Porventura pensas, disse, que é vida vã a de um homem a olhar naquela direção e aquele objeto, como aquilo com que deve, quando o contempla e com ele convive? Ou não consideras, disse ela, que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando? E que, a quem produziu autêntica virtude e alimentou cabe tornar-se amigo da divindade, e se algum outro homem cabe tornar-se imortal, é sobretudo a este?

(Platão, O banquete - fragmento)

Nestas notas, observaremos a forma nova com que o eu-lírico camoniano emprega para tratar acerca da temática amorosa. Foi o poeta bastante influenciado em sua lírica mais conhecida – como a das contradições apresentadas no famoso poema, Amor é fogo que arde sem se ver – pela perspectiva filosófica denominada de neoplatonismo.

As obras filosóficas de Platão e Aristóteles foram muito estudadas durante a Idade Média. Na passagem para o Renascimento, a influência de Platão manteve-se bastante forte e alguns filósofos da época, como Leon Hebreu, chegaram a realizar atualizações em algumas de suas teorias. A definição platônica de amor, que interessa mais de perto, foi objeto de uma dessas atualizações, de modo a ser conciliada com uma visão cristã de mundo.

É em O banquete que Platão define o amor como sentimento capaz de purificar o ser humano. Para que tal purificação ocorra, porém, é necessário que o amante siga alguns passos que o afastarão cada vez mais das coisas terrestres – aparentes, características do mundo sensível – e o levarão em direção à essência – característica do mundo inteligível. Como foi visto no fragmento que rege este texto, o amor, segundo Platão, leva o ser humano a um processo ascencional, permitindo que se desprenda das coisas ilusórias da vida e contemple o “belo em si”, a verdadeira essência de tudo.

A perspectiva neoplatônica que inspira os poemas camonianos é em tudo semelhante à apresentada por Diotima a Sócrates, com uma única exceção: como resultado final, em lugar da contemplação do “belo em si”, o processo de purificação amorosa passa a aproximar o ser humano das coisas divinas. Como valores a serem alcançados através desse exercício de purificação pessoal, os neoplatonistas conservam aqueles identificados por Platão: o Bem, o Belo e a Verdade.

Camões demonstra, em seus sonetos, uma luta constante entre um amor material, manifestação da carnalidade e do desejo, e o amor visto como ideia, puro, espiritualizado, capaz de conduzir o ser humano à realização plena. É natural que, segundo esta última perspectiva, a mulher seja retratada como exemplo da perfeição, já que ela inspira a superação do amor carnal e a realização do amor puro. São inúmeros os sonetos em que o amor neoplatônico é trabalhado.

Transforma-se o amador em cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que, como o acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
[E] o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.

Noutros sonetos – e aqui reside sua inovação em torno da temática amorosa – Camões apresenta um amor mais materializado, terreno e carnal, fonte de sofrimento constante. A impossibilidade de explicar racionalmente o sentimento amoroso e de conciliar desejo carnal e purificação espiritual levam a poesia camoniana a manifestar frequentes contradições, que se explicitam no uso intenso de antíteses e paradoxos. 

Para a crítica, o poeta português esgotou quase todas as possibilidades de abordagem sobre o tema em sua obra lírica; ele está visível não apenas nos sonetos (cf. vimos destacar nas duas postagens anteriores), mas, desde alguns episódios de Os Lusíadas. Daí a afirmativa sempre certa (pautada na ideia de que a arte imita a vida) que tenha sido um homem que experimentou as diversas formas de amor e, claro, numa época de amor cortesão, tenha tido uma vida intensa e tumultuada. Fato é que, do seu tempo (e mesmo para as poéticas posteriores) nenhum outro soube expressar com real empatia as dores do sentimento amoroso, sem se guiar por um sentimentalismo gratuito, adolescente.

A poesia amorosa de Camões é sensual, do homem tragado pela volúpia do corpo, encantado pela forma feminina, do boêmio apaixonado e exaltado, tudo numa medida em que, mantém certo zelo pela imagem cantada, ainda quando o retrato é o da dor da perda, da decepção amorosa, do desengano, da traição ou do abandono. O tema amoroso em Camões é tocada por uma verve melancólica, à sombra do desencanto, da desesperança e da degenerescência do eu ante a impossibilidade de se cumprir a plenitude da felicidade a partir do amor.

A obra lírica de Camões se tornou imortal, não apenas porque o poeta falou sobre um sentimento comum a todos povos e a todos os tempos, mas porque introduziram uma nova compreensão sobre um tema maleável, revigorado a cada geração. Afinal, ele sabia que mudam-se os tempos, mudam-se as vontades.


Ligações a esta post:
>>> Camões, cantor de seu povo e voz de seu tempo
>>> Camões, um gênio do lirismo amoroso


* As ideias e expressões que compõem este texto-dossiê estão em ABAURRE, Maria Luiza; PONTARRA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Português: língua e literatura. São Paulo: Moderna, 2000.

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