Camões, um gênio do lirismo amoroso
Camões e as Tágides. Columbano Bordalo Pinheiro, 1894. |
Camões, como poeta lírico, dominou com excelência tanto as formas da medida velha como as da medida nova. Versos redondilhos ou decassílabos, sonetos, sextilhas, odes, éclogas, elegias, oitavas; em todas as formas poéticas por que se aventurou o poeta português deixou a marca de sua genialidade.
Os poemas compostos pelos trovadores medievais e pelos poetas palacianos eram, como se sabe, caracterizados por utilizar os versos redondilhos – de cinco e sete sílabas métricas –, de mais fácil memorização. Também camões escreveu inúmeras redondilhas, compostas geralmente de um mote e de uma ou mais estrofes que constituíam glosas – ou voltas – a ele. Não raro lhe ofereciam motes para que glosasse.
Volta a cantiga alheia
Na fonte está Lianor
Lavando a talha e chorando,
Às amigas perguntando:
– Vistes lá o meu amor?
Voltas
Posto o pensamento nele,
Porque a tudo o amor obriga,
Cantava, mas a cantiga
Eram suspiros por ele.
Nisto estava Lianor
O seu desejo enganando,
Às amigas perguntando:
– Vistes lá o meu amor?
O rosto sobre uma mão,
Os olhos no chão pregados,
Que, do chorar já cansados,
Algum descanso lhe dão,
Desta sorte Lianor
Suspende de quando em quando
Sua dor; e, em si tornando,
Mais pesada sente a dor.
Não deita dos olhos água,
Que não quer que a dor se abrande
Amor, porque, em magoa grande,
Seca as lágrimas a mágoa.
De[s]pois que de seu amor
Soube novas perguntando,
De improviso a vi chorando
Olhai que extremas de dor!
Este poema é uma conhecida de suas redondilhas. O poeta desenvolve a ideia presente numa cantiga alheia – como uma espécie de epígrafe – resgatando, dessa forma, uma estrutura poética típica do Humanismo.
Um aspecto determinante dos versos compostos em medida velha é o tratamento que neles é dado ao tema do amor. Como se observa, na redondilha acima, Camões resgata não só uma estrutura mais antiga, como toma emprestada a visão feminina quase medieval sobre as dores do amor, deixando entrever ecos das cantigas de amigo, nas quais a mulher pergunta às amigas notícias do seu amado, por quem sofre de saudades. Nos sonetos, como a seguir veremos, o tema do sofrimento amoroso é apresentado a partir da visão masculina.
São os sonetos, certamente, a parte mais conhecida da lírica camoniana. Com estrutura tipicamente silogística, normalmente apresentam duas premissas e uma conclusão, que costuma ser revelada no último terceto, fechando, desse modo, um raciocínio.
Todo animal da calma repousava,
Só Liso o ardor dela não sentia;
Que o repouso do fogo em que ardia
Consistia na ninfa que buscava.
Os montes parecia que abalava
O triste som das mágoas que dizia;
Mas nada o duro peito comovia,
Que na vontade de outrem posto estava.
Cansado já de andar pela espessura,
No tronco de uma faia, por lembrança,
Escreve estas palavras de tristeza:
“Nunca ponha ninguém sua esperança
Em peito feminil, que de natura
Somente em ser saudável tem firmeza”.
Observe-se pela leitura dois quartetos a identificação de duas premissas: 1 – a esperança só existe com a constância; 2 – a mulher não tem constância. A conclusão é explicitada no terceto final: não se deve pôr esperanças nas mulheres. O silogismo poderia, então, ser assim apresentado: se a esperança só existe na constância, então não se deve pôr esperanças nas mulheres.
Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.
Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contendo-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.
Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,
Começa a servir outros sete anos,
Dizendo: – Mas servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta vida!
Ao retomar uma antiga passagem do Antigo Testamento, novamente pode-se perceber o encaminhamento de um raciocínio lógico acerca da problemática amorosa. O raciocínio é, portanto, evidente. Se Jacó trabalha durante sete anos para obter a permissão de ficar com Raquel e, findo o período, obteve Lia, a outra filha de Labão, então o pastor precisa trabalhar mais sete anos para que lhe seja concedida a sua amada Raquel. Essa análise racional permite que se considere a abordagem da questão amorosa feita nesse soneto como tipicamente clássica.
Só que, além da estrutura silogística, outra característica a ser observada na lírica camoniana é o constante desenvolvimento de alguns temas específicos, tais como o desconcerto do mundo, a mutabilidade das coisas, uma nova visão de amor, o neoplatonismo amoroso.
Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?
A lírica camoniana
não se prendeu apenas em questões e nem na forma antigas. Seus sonetos, além da
temática amorosa clássica, versaram sobre uma ampla temática e ensaiaram um
destronamento do amor enquanto forma abstrata.
Parte de seus sonetos preocupou-se em versar acerca do desconcerto do mundo.
Com essa temática, o poeta procura mostrar que há um excesso de contradições e
falsidade nas coisas do mundo. Aquilo que é observado pode nos levar ao
equívoco e, consequentemente, ao sofrimento, uma vez que a razão não parece
compreender o desconcerto do que está a sua volta.
Correm turvas as águas deste rio,
Que as do céu e as do monte as enturbaram.
Que as do céu e as do monte as enturbaram.
Os campos florescidos se secaram,
Intratável se fez o vale, e frio.
Passou o verão, passou o ardente estio,
Umas coisas por outra se trocaram.
Os fementidos fados já deixaram
Do mundo o regimento, ou desvario.
Tem o tempo sua ordem já sabida;
O mundo, não; mas anda tão confuso,
Que parece que dele Deus se esquece.
Casos, opinião, natura e uso
Fazem que nos pareça desta vida
Que não há nela mais que o que parece.
O mundo apresentado por Camões em sua lírica é dinâmico. Assim, o ser humano e
bem como a natureza estão sujeitos a mudanças constantes. O importante, porém,
é que, enquanto as mudanças da natureza seguem um ritmo previsível – a sucessão
das estações do ano, por exemplo, as alterações sofridas pelas pessoas são
causa de inevitável sofrimento, porque vêm associadas à passagem do tempo. Seu
mais conhecido soneto sobre tal tema, a da mutabilidade das coisas, dá conta
disso.
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto,
Que não se muda já como soía.
No soneto assiste-se um eu-lírico que discorre da sucessão das estações como
esperada: ao inverno segue a primavera – “O tempo cobre o chão de verde mando/
que já coberto foi de neve fria” –, ao passo que sofre com as saudades
provocadas pelas lembranças boas e com o sofrimento causado pelas más – “do mal
ficam as mágoas na lembrança,/ e do bem, se algum houve, as saudades” –, de tal
forma que a passagem do tempo sempre lhe traz dor e sofrimento.
Mas talvez o que mais marque a lírica de camoniana é nova visão que o poeta
português incute ao amor.
Ligações a esta post:
* As ideias e expressões que compõem este texto-dossiê estão em ABAURRE,
Maria Luiza; PONTARRA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Português: língua
e literatura. São Paulo: Moderna, 2000.
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