Tomás Antônio Gonzaga
Tu não
verás, Marília, cem cativos
tirarem o
cascalho e a rica terra,
ou dos
cercos dos rios caudalosos,
ou ainda da
minada serra.
Quem já leu
Marília de Dirceu certamente há de se lembrar desses versos, talvez uma dos mais conhecidos da literatura brasileira. Os versos foram escritos no período em que o poeta Tomás Antônio
Gonzaga encontrava-se encarcerado. Semelhante a Cláudio Manuel da Costa ele
também foi preso. No seu caso, mandado para o degredo em Moçambique, na África, quando do estouro do
movimento da inconfidência. Foi naquele continente que o poeta teve de reconstituir
sua vida. Foi no degredo que poeta faleceu em 1810. Também como Cláudio Manuel
da Costa, formou-se em Direito pela Universidade de Coimbra. Chegou a exercer em
Vila Rica o cargo de ouvidor.
Para Antonio Candido, em Formação da literatura brasileira, "o certo é que em Tomás Gonzaga a poesia parece fenômeno mais vivo e autêntico, menos literário do que em Cláudio, por ter brotado de experiências humanas palpitantes." Sendo este um homem marcado pela crise amorosa e política, impregnou todo seu trabalho criativo das marcas diretas de sua vida.
Os versos de
Marília de Dirceu, por exemplo, seguem os preceitos árcades, mas as liras que compõe a obra
reconstituem a paixão do poeta pela jovem Maria Dorotéia e Seixas, moça de
dezessete anos de quem Gonzaga chegou a ficar noivo. Ao lado dos versos em que
Dirceu – pseudônimo para Gonzaga – exalta a beleza de Marília – claro está,
pseudônimo para Maria Dorotéia –, Gonzaga cria, de modo inovador, a presença
marcante de um eu-lírico que, mesmo apresentando-se como pastor, caracteriza-se
como um intelectual.
Com este livro, Tomás Antônio Gonzaga moldou um dos primeiros mitos da nossa literatura; uma figura modulada por uma variedade de outras musas possíveis, cantadas noutros poemas do poeta, mas de existência vivaz e significação sentimental própria acerca do amor que amadurecido à distância sem se realizar permanece para todo o sempre, um acorde platônico.
No já citado texto de Antonio Candido, o autor chama atenção para outro traço excepcional do Marília de Dirceu: "a conjunção de um poeta de meia idade com a menina de dezessete anos". Recorde o leitor que esta imagem se preserva na memória do poeta; apenas ele se percebe levado pelas marcas do tempo. "O quarentão é o amoroso refinado, capaz de sentir poesia onde o adolescente só vê o embaraçoso cotidiano; e a proximidade da velhice intensifica, em relação à moça em flor, um encantamento que mais se apura pela fuga do tempo e a previsão da morte", completa o crítico. E acrescenta
"Daí, em sua poesia, a substituição da antiga pena de amor como impaciência sensual, pela aspiração ao convívio doméstico, que coroa e consolida os amores da mocidade. As suas liras são copiosas na celebração do lar, nos sonhos de vida conjugal. Por isso dignificam os sentimentos quotidianos, superando os disfarces alegóricos que o Arcadismo herdou da poesia seiscentista e quinhentista. Marília aparece então realmente como noiva e esposa, desimpedida de toda a tralha mitológica, livre da idealização exaustiva com que aparece noutros poemas".
Além de Marília
de Dirceu, Gonzaga escreveu Cartas chilenas, um texto de caráter satírico em que
os desmandos morais e administrativos do governador da Capitania de Minas,
chamado de o “Fanfarrão Minésio”, são duramente criticados.
A seguir um
fragmento de Marília de Dirceu (1) e em seguida fragmento do Cartas Chilenas
(2).
(1)
Tu não
verás, Marília, cem cativos
tirarem o
cascalho e a rica terra,
ou dos
cercos dos rios caudalosos,
ou ainda da
minada serra.
Não verás
separar ao hábil negro
do pesado
esmeril a grossa areia,
e já
brilharem os granetes de oiro
no fundo da
bateia.
[...]
Verás em
cima da espaçosa mesa
altos
volumes de enredados feitos;
ver-me-ás
folhear os grandes livros,
e decidir os
pleitos.
Enquanto
revolver os meus consultas,
tu me farás
gostosa companhia,
lendo os
fastos da sábia, mestra História,
e os cantos
da poesia.
Lerás em voz
alta, a imagem bela;
eu, vendo
que lhe dás o justo apreço,
gostoso
tornarei a ler de novo
o cansado
processo.
Se
encontrares louvada uma beleza,
Marília, não
lhe invejes a ventura,
que tens
quem leve à mais remota idade
a tua
formosura.
(2)
O corpo de
estatura um tanto esbelta,
Feições
compridas e olhadura feia;
Tem grossas
sobrancelhas, testa curta,
Nariz direito
e grande, fala pouco
Em rouco,
baixo som de mau falsete;
Sem ser
velho, já sem cabelo ruço,
E cobre este
defeito e fria calva
À força de
polvilho que lhe deita
Ainda me
parece que o estou vendo
No gordo
rocinante escarranchado
As longas
calças pelo umbigo atadas,
Amarelo
colete, e sobre tudo
Vestida uma
vermelha e justa farda.
Cartas chilenas é um dos livros que envolve todo um dilema circunscrito em torno da sua autoria. É notável a essa altura que se trata de uma obra do poeta aqui em questão, mas a dispersão, a ausência de partes do texto (as passagens n.7 e n.13 só restaram fragmentos) e a ausência de assinatura autoral são alguns dos elementos motivadores do impasse.
É um livro que inaugura uma linha criativa até agora vigorosa na nossa literatura: a sátira política. Todas as cartas tratam de, em crescendo, destacar a ausência de tudo na autoridade governamental e déspota do Governador Luís da Cunha Pacheco que regeu a capitania de Minas Gerais entre 1783 e 1788. "Critilo [o autor enunciador das cartas] se aplica de tal modo na sátira que - sentimos lendo-a - a beleza mal o preocupa; e os poucos momentos em que a diatribe amaina são meros recursos para repousar e aguçar a atenção. Os versos se concentram no ataque, revelando a tensão, a energia mental com que os elaborou", observa Antonio Candido.
"O fato, porém, é que a sátira do bem-pensante e honrado Critilo desnudava, através da atuação de um régulo, as iniquidades potenciais do sistema: daí o seu significado político e o valor de índice de uma época. Se, enquanto homem humilhado, queria que a verrina significasse desforço, enquanto homem público notava as desarmonias entre a autoridade e a sociedade", completa Antonio Candido. Cartas chilenas, portanto é um desses textos que tanto dizem do Brasil do tempo quando foi escrito como do Brasil de agora, afinal aquele nunca foi de um todo superado.
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