O homem duplicado, de José Saramago

Por Pedro Fernandes



O homem duplicado conta com um acontecimento insólito como propulsor para o desenvolvimento da narrativa; essa parece ser o tônus para a formação de todo os romances pós-históricos de José Saramago. A nomenclatura para designar o conjunto dos primeiros romances do escritor português bem sei que é inválida, uma vez que as obras assim chamadas - Levantado do chão, Memorial do convento, O ano da morte de Ricardo Reis, História do cerco de Lisboa - não se esgotam neste rótulo de romance histórico. São, sim, romances que se utilizam da história como elemento problematizador ou como matéria sobre a qual se constrói a narrativa; além disso, destituindo a história do pedestal a que foi elevada - o de ser verdade absoluta sobre o acontecido - toda e qualquer narrativa é, de fato, uma história.

O tal acontecimento insólito se dá com o professor de História Tertuliano Máximo Afonso. O personagem descobre a partir de um vídeo a existência de um sósia, de um gêmeo, ou como diz a personagem, mais que isso, um "duplicado seu". Este acontecimento é propulsor da narrativa porque é depois da descoberta o desenvolvimento do que poderíamos chamar de thriller, uma viagem investigativa conduzida por Tertuliano a fim de encontrar-se pessoalmente com o outro. É para esta viagem, portanto, que se dedica o tempo a trama romanesca. O sósia é aparecido com o nome de Daniel Santa Clara, mais tarde António Claro.

No que consiste essa busca, o detalhamento dos acontecimentos e seu desfecho são coisas que ficam por dizer - coloco nas mãos do leitor ir buscar a leitura do romance. Digo apenas que se trata de um romance com trama imprevisível; a cada esquina de um período, o rumo que ela pode tomar é o de qualquer rumo que caiba à imaginação. Típico de um escritor que revelou, por vezes, não adotar um procedimento fechado para a composição de sua escrita.

Se tem sido o interesse de Saramago refletir acerca das questões que dizem respeito ao homem e ao espaço em que nele vive, como é fato em romances como Ensaio sobre a cegueira ou Ensaio sobre a lucidez, para ficarmos apenas em dois exemplos, O homem duplicado vem tratar das questões que dizem respeito à fragmentariedade das identidades humanas no atual estágio de sociedade. Isso já adianta que não é este uma obra com cunho de ficção científica. Não. Saramago problematiza o sujeito contemporâneo, propõe uma revisão acerca das fronteiras dessa individualidade que o tem cerrado numa bolha de indiferença e de aparência. Qualquer relação com a ideia de vulto - conduzida nos dois romances citados no início desse parágrafo - não é mera coincidência.

"Estamos sempre buscando conhecer o outro. E se buscamos conhecer o outro, de forma direta ou indireta, voluntária ou involuntária, também estamos a tentar dizer quem somos" - a frase do escritor sintetiza estas notas. É que sendo esta uma busca voluntária do eu-Tertuliano em relação ao outro-Daniel-Santa-Clara é uma busca do próprio Tertuliano. Talvez seja isso tudo um breve resumo de nosso própria existência: vivemos na viagem de saber quem somos. Tem nessa busca, altas doses de filosofia do sujeito; território pelo qual o escritor português sempre tem estado a transitar.

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