José Saramago escreve sobre Fernando Pessoa
1. Em 1985, organizou-se em Lisboa uma exposição que reuniu múltiplas obras com retratos de Fernando Pessoa. A Fundação Calouste Gulbenkian foi convidada a refazer três anos mais tarde Um rosto para Fernando Pessoa em São Paulo. Artistas de estética diversa, de convívio ou não com o poeta português, que fizeram peças como a mais conhecida que se vê ilustrando esta matéria, foram reunidos nesta ocasião.
2. Foi José Saramago o convidado na época (na primeira edição) para escrever o prefácio para o catálogo da exposição. Este mesmo texto saiu num pequeno livreto-catálogo da exposição no Brasil; é um material que circula agora entre nós através dos sebistas. O texto do catálogo amplia a visão sobre a imagem - pela interrogação sempre ousada - do escritor Prêmio Nobel.
3. Mas, o melhor, o escritor que também pintou um retrato do poeta de Mensagem (leia O ano da morte de Ricardo Reis e apreciará o que digo), compartilhou com os leitores que o acompanham no seu blog, "O caderno", este texto. É um excelente olhar o de José Saramago. E o texto falará por si sobre o homem de múltiplas faces que foi / é Fernando Pessoa.
José de Almada Negreiros. Retrato de Fernando Pessoa. 1964. Reprodução: Casa Fernando Pessoa |
Da impossibilidade deste retrato
Que retrato
de si mesmo pintaria Fernando Pessoa se, em vez de poeta, tivesse sido pintor,
e de retratos? Colocado de frente para o espelho, ou de meio perfil, obliquando
o olhar a três quartos, como quem, de si mesmo escondido, se espreita, que
rosto escolheria e por quanto tempo? O seu, diferente segundo as idades,
assemelhando a cada uma fotografias que dele conhecemos, ou também o das
imagens não fixadas, sucessivas entre o nascimento e a morte, todas as tardes,
noites e manhãs, começando no Largo de S. Carlos e acabando no Hospital de S.
Luís? O de um Álvaro de Campos, engenheiro naval formado em Glasgow? O
de\Alberto Caeiro, sem profissão nem educação, morto de tuberculose na flor da
idade? O de Ricardo Reis, médico expatriado de quem se perdeu o rasto, apesar
de algumas notícias recentes obviamente apócrifas? O de Bernardo Soares,
ajudante de guarda-livros na baixa lisboeta? Ou um outro qualquer, o Guedes, o
Mora, aqueles tantas vezes invocados, inúmeros, certos, prováveis e possíveis?
Representar-se-ia de chapéu na cabeça? De perna traçada? De cigarro apertado
entre os dedos? De óculos? De gabardina vestida ou sobre os ombros? Usaria um
disfarce, por exemplo, apagando o bigode e descobrindo a pele subjacente, de
súbito nua, de súbito fria? Cercar-se-ia de símbolos, de cifras da cabala, de
signos horoscópicos, de gaivotas no Tejo, de cais de pedra, de corvos
traduzidos do inglês, de cavalos azuis e jockeys amarelos, de premonitórios
túmulos? Ou, ao contrário destas eloquências, ficaria\sentado diante do
cavalete, da tela branca, incapaz de levantar um braço para atacá-la ou dela se
defender, à espera de um outro pintor que ali fosse tentar o impossível
retrato? De quem? De qual?
De uma
pessoa que se chamou Fernando Pessoa começa a ter justificação o que de Camões
já se sabe. Dez mil figurações, desenhadas, pintadas, modeladas, esculpidas,
acabaram por tornar invisível Luís Vaz, o que dele ainda permanece é o que
sobra: uma pálpebra caída, uma barba, uma coroa de louros. É fácil de ver que
Fernando Pessoa também vai a caminho da invisibilidade, e, tendo em conta a
ocorrente multiplicação das suas imagens, provocada por apetites sobreexcitados
de representação e facilitadas por um domínio generalizado das técnicas, o
homem dos heterónimos, já voluntariamente confundido nas criaturas que
produziu, entrará no negro absoluto em muito menos tempo que o outro de uma
cara só, mas de vozes também não poucas. Acaso será esse, quem sabe, o perfeito
destino dos poetas, perderem a substância de um contorno, de um olhar gasto, de
um vinco na pele, e dissolverem-se no espaço, no tempo, sumidos entre as linhas
do que conseguiram escrever, se do rosto sem feições nem limites ainda alguma
coisa vem intrometer-se, está garantido o dia em que mesmo esse pouco será
definitivamente lançado fora. O poeta não será mais que memória fundida nas
memórias, para que um adolescente possa dizer-nos que tem em si todos os sonhos
do mundo, como se ter sonhos e declará-lo fosse primeira invenção sua. Há
razões para pensar que a língua é, toda ela, obra de poesia.
Entretanto,
o pintor vai pintando o retrato de Fernando Pessoa. Está no princípio, não se
sabe ainda que rosto escolheu, o que se pode ver é uma levíssima pincelada de
verde, se calhar vai sair daqui um cão dessa cor para pôr em conjunção com um
jockey amarelo e um cavalo azul, salvo se o verde for apenas o resultado físico
e químico de estar o jockey em cima do cavalo, como é sua profissão e gosto.
Mas a grande dúvida do pintor não tem que ver com as cores que há-de empregar,
essa dificuldade resolveram-na os impressionistas de uma vez para sempre, só os
homens antigos, os de antes, não sabiam que em cada cor as cores estão todas: a
grande dúvida do pintor é se há-de ter uma atitude reverente ou irreverente, se
pintará esta virgem como S. Lucas pintou a outra, de joelhos, ou se tratará
este homem como um triste coitado que realmente foi ridículo a todas as criadas
de hotel e escreveu cartas de amor ridículas, e se, assim autorizado pelo
próprio, poderá rir-se dele pintando-o. A pincelada verde, por enquanto, é
somente a perna do jockey amarelo posta do lado de cá do cavalo azul. Enquanto
o maestro não sacudir a batuta, a música não romperá lânguida e triste, nem o
homem da loja começará a sorrir entre as memórias da infância do pintor. Há uma
espécie de ambiguidade inocente nesta perna verde, capaz de se transformar em
verde cão. O pintor deixa-se conduzir pela associação de ideias, para ele,
perna e cão tornaram-se em meros heterónimos de verde: coisas bem mais
inacreditáveis do que esta têm sido possíveis, não há que admirar. Ninguém sabe
o que se passa na cabeça do pintor enquanto pinta. O retrato está feito, vai
juntar-se às dez mil representações que o precederam. É uma genuflexão devota,
é uma risada de troça, tanto faz, cada uma destas cores, cada um destes traços,
sobrepondo-se uns aos outros, aproximam o momento da invisibilidade, aquele
negro absoluto que não reflectirá nenhuma luz, sequer a luz fulgurante do sol,
que faria então à breve cintilação de um olhar, em frente a apagar-se tão cedo.
Entre a reverência e a irreverência, num ponto indeterminável, estará, talvez,
o homem que Fernando Pessoa foi. Talvez, porque também isso não é certo. Albert
Camus não pensou duas vezes quando escreveu: "Se alguém quiser que o
reconheçam, basta que diga quem é." No geral dos casos, o mais longe a que
chega quem a tal aventura ouse propor-se é dizer que nome lhe puseram no
registo civil.
Fernando
Pessoa, provavelmente, nem tanto. Já não lhe bastava ser ao mesmo tempo Caeiro
e Reis, cumulativamente Campos e Soares. Agora que já não é poeta, mas pintor,
e vai fazer o seu auto-retrato, que rosto pintará, com que nome assinará o
quadro, no canto esquerdo dele, ou direito, porque toda a pintura é espelho, de
quê, de quem, para quê? O braço levanta-se, enfim, a mão segura uma pequena
haste de madeira, de longe diríamos que é um pincel, mas há motivos para
suspeitar: nele não se transporta uma cor verde, ou azul, ou amarela, nenhuma
cor se vê, nenhuma tinta. Este é o negro absoluto com que Fernando Pessoa, por
suas próprias mãos, se tornará invisível.
Mas os
pintores vão continuar pintando.
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