José de Alencar




Em 1856 saía publicado A confederação dos Tamoios, poema do escritor Gonçalves de Magalhães. Quase que em paralelo saía uma crítica de um desconhecido. Assinava-se Ig.

“[...] se algum dia fosse poeta, e quisesse cantar a minha terra e as suas belezas, se quisesse compor um poema nacional, pediria a Deus que me fizesse esquecer por um momento as minhas idéias de homem civilizado.

Filho da natureza embrenhar-me-ia por essas matas seculares; contemplaria as maravilhas de Deus, veria o sol erguer-se no seu mar de ouro, a lua deslizar-se no azul do céu; ouviria o murmúrio das ondas e o eco profundo e solene das florestas.

E se tudo isso não me inspirasse uma poesia nova, se não desse ao meu pensamento outros vôos que não esses adejos de uma musa clássica ou romântica, quebraria a minha pena com desespero mas não a mancharia numa poesia menos digna de meu nobre país.”*

Ig era José de Alencar. E esse texto daria início a uma das mais acaloradas polêmicas da ainda nascente literatura brasileira. Criticava a Magalhães o seu tom classicizante e sua incapacidade de retratar de forma fiel a natureza brasileira.

O autor é cearense de Messejana. Nascido em 1829. Não se notabilizou como poeta, mas como romancista. Nos romances tentou mostrar as suas possibilidades de retratista fiel da natureza brasileira conforme assinalou na crítica. E, terá conseguido? No imaginário dominante, sim. Para a crítica ou um leitor que observe mais de perto das várias implicações ideológicas que constituem a formação da literatura de Alencar não é bem assim. O escritor, filho de um interior com laços estreitos com a classe dominante, produziu uma obra que apostava na discutível unidade racial na formação do Brasil enquanto depositava na parte simples da sociedade o ideal de renúncia pelo bem dominante.

Antes de se tornar o notável romancista que foi, Alencar formou-se em Direito depois de estudar em Olinda e em São Paulo. Também trabalhou como redator-chefe do Diário do Rio de Janeiro. Fez carreira política como deputado pelo estado do Ceará e como ministro da Justiça. E, entre outras coisas, produziu um dos mais importantes conjuntos de obras da nossa literatura com destaque para O guarani; foi este romance o de destaque na primeira fase da literatura romântica brasileira - a fase indianista ou nativista. No interesse de contar o mito de formação do Brasil, o escritor compôs outros dois títulos, Iracema e Ubirajara.

Alinhados, os três livros desenvolvem o seguinte: Ubirajara, uma tentativa de poema épico, trata sobre o tempo anterior ao da chegada do povo português no que viriam ser as terras brasileiras. É a tentativa mais viva de se aproximar do imaginário indígena e o oferecer um retrato sobre o convívio dos vários povos originários do Brasil, muito embora, seja uma visão totalmente mediada por ideais fabricados a partir da cultura dominante. 

Depois, em Iracema, um poema em prosa, o escritor oferece a partir do retrabalho com uma narrativa de uma lenda popular de formação do Ceará o trânsito entre a colônia formada por índios e a chegada do povo português. O envolvimento amoroso entre a bela dos lábios de mel com o branco Martim Soares Moreno, a quem revela o segredo da jurema se tornou uma expressão também idealizada do que, aos olhos de Alencar, significou um encontro de raças feito das mesmas tintas com as quais o colonizador havia idealizado quando escreveu ao rei as primeiras impressões das terras recém-descobertas: de riquezas e figuras dóceis.

Já em O guarani, o escritor aprofunda essa imagem ao desenvolver uma narrativa que acompanha o tratamento paciente de um indígena dos goitacá capaz de abandonar toda sua ancestralidade para servir integral e dedicadamente a uma moça branca. Para Alfredo Bosi, este é um romance que favorece o elastecimento de um complexo sacrificial na mitologia romântica de Alencar: as tramas narrativas ou dramáticas se resolvem pela imolação voluntária dos protagonistas: o índio, a índia, a mulher prostituída, a mãe negra.       

Ambicioso por se estabelecer nas bases de constituição da nossa cultura literária, José de Alencar expandiu seu sistema de ficções pelos principais caminhos do romance romântico em seu tempo. Assim, além das tramas indianistas, percorreu as das narrativas sobre dramas burgueses e urbanos em  obras como Cinco minutos, A viuvinhaLucíolaDiva e Senhora - estas três últimas talvez as mais conhecidas - e pelas narrativas de feições regionalistas como Til, O sertanejo e O gaúcho.

Esse projeto literário guia-se por um apelo às forças de criação de uma obra que dissesse o Brasil de seu tempo e fugisse do estereótipo europeu, mesmo que tenha exagerado ao máximo nos europeísmos. Seus índios, por exemplo, chegam a ser criaturas mais fidalgas que muitos fidalgos do seu tempo. Obviamente que isso em nada fere os seus princípios patrióticos e nem as construções que no seu tempo foram inovadoras, apenas favorece que não deixemos de observá-lo como um literato bifronte. 

Ao se referir como o único autor a criar um mito heróico na nossa literatura, Antonio Candido em Formação da Literatura Brasileira assim diz: Não será de fato escritor para a cabeceira, nem para absorver uma vocação de leitor; mas não aceitar este seu lado épico, não ter vibrado com ele, é prova de imaginação pedestre ou ressecamento de tudo o que em nós, mesmo adultos, permanece verde e flexível.

No teatro, consagrou-se não com uma peça. Mas com um romance que chegou a ser adaptado para os palcos com sucesso galopante: O guarani foi adaptado para ópera em 1870. Mas deixou textos como O crédito, O demônio familiar O jesuíta, este último editado postumamente como as antologias de crônicas, cartas e críticas. Morreu em dezembro de 1877, no Rio de Janeiro.


* Texto-base e fragmentos de José de Alencar em ABAURRE, Maria Luiza; PONTARRA, Marcela Nogueira; FADEL, Tatiana. Português: língua e literatura. São Paulo: Moderna, 2000.

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