Os aforismos de Franz Kafka
Por Pedro Fernandes
Modesto Carone se firmou na cena literária
brasileira com um feito: tem se dedicado a verter para o nosso idioma a obra de
Franz Kafka, seguramente um dos nomes mais importantes para a literatura do
século XX. Esse trabalho de tradutor começou a ser apresentado pela Brasiliense
e ultimamente tem se concentrado na Companhia das Letras.
No começo deste mês, a revista Serrote,
uma publicação interessada em reunir ensaios, preenchendo uma das muitas
lacunas entre as nossas carentes fronteiras da crítica, trouxe um encarte com
algumas dessas pequenas pérolas. Intitula-se
Aforismos reunidos. Publicado on-line, o livrinho reúne mais de uma centena
de anotações de Franz Kafka.
No também pequeno texto que abre a
edição, Modesto Carone explica que essa forma textual foi recorrente nos
escritos do tcheco, como se nota nos diálogos que manteve com o poeta Gustav
Janouch em Conversas com Kafka (1953). Os aforismos — textos de definição
marcante e curta, sem espaço para discussão — chegaram a preencher um livro dos
vários póstumos até agora conhecidos, um livro derivado dos seus diários.
Mas Kafka chegou a organizar uma seleta
com esses pequenos textos. “Do outono de 1917 até a primavera de 1918, o
pensador de Praga, já muito doente, recebeu uma licença de saúde do trabalho de
jurista e foi morar numa propriedade de Zürau, dirigida por sua irmã predileta,
Ottla. Foi no campo, com a ‘respiração diferente’ e atento à gravidade da tuberculose
pulmonar que deveria matá-lo (sua primeira hemoptise ocorreu em 1917), que ele
se dedicou com afinco a esse tipo de escrita, que testemunha sua preocupação
com a vida e a morte, lembrando pelo laconismo, ou então pela frase
circunstanciada, o ‘protocolo kafkiano’, que coincide, em longa medida, com seu
gosto pela narrativa breve (contos, novelas, parábolas), que vinca sua obra e,
até certo ponto, supera, pela composição enxuta e muitas vezes rasante, os
grandes romances do espólio.”
Modesto Carone também explica que
depois de passar a limpo à mão os 109 aforismos que agora sai reunido na
publicação do Instituto Moreira Salles (IMS) formam parte da seleção conduzida e deixada
pelo próprio Kafka. Para ele, existe nesse procedimento “a evidente intenção de
dá-los a público. Tudo indica que não houve tempo hábil para tomar essa decisão.”
Franz e Ottla Kafka em frente à entrada de uma fazenda administrada por ela em Zürau, 1917. |
O verdadeiro caminho passa
por uma corda que não está esticada no alto, mas logo acima do chão. Parece
mais destinada a fazer tropeçar do que a ser percorrida.
19
Não deixe que o mal o faça
acreditar que você poderia guardar segredos diante dele.
24
Compreender a felicidade
de que o solo sobre o qual você se mantém não pode ser maior que os dois pés
que o cobrem.
25
Como é possível alguém
alegrar-se com o mundo, a não ser quando se refugia nele?
31
Não aspiro ao
autocontrole. Autocontrole significa: querer atuar num ponto aleatório das
irradiações infinitas da minha existência espiritual. Mas tenho de traçar estes
círculos em torno de mim, por isso é melhor fazê-lo passivamente no puro espanto
de admiração perante o imenso complexo e levar para casa apenas a força
que, e contrario, essa visão oferece.
50
O homem não consegue viver
sem uma confiança duradoura em algo indestrutível nele mesmo, muito embora
tanto o indestrutível como a confiança possam permanecer-lhe ocultos de
maneira contínua. Uma das possibilidades dessa ocultação permanente é a crença
em um Deus pessoal.
55
Tudo é fraude: buscar o
mínimo de ilusão, permanecer no nível usual, buscar o máximo. No primeiro caso,
frauda-se o bem, na medida em que se deseja tornar fácil demais sua conquista;
o mal, na medida em que é colocado em condições de luta excessivamente
desfavoráveis. No segundo caso, o bem é fraudado na medida em que não se luta
para alcançá-lo, nem mesmo naquilo que é terreno. No terceiro caso, frauda-se o
bem na medida em que a esperança é torná-lo impotente com sua máxima
intensificação. Seria preferível, nisso tudo, o segundo caso, pois sempre se
frauda o bem e não o mal; neste caso, pelo menos na aparência.
69
Teoricamente existe uma
chance de felicidade plena: acreditar no que há de indestrutível em si próprio
e não ter de lutar para alcançá-lo.
80
A verdade é indivisível,
portanto não pode ter conhecimento de si mesma; quem quer que diga conhecê-la
está se referindo a uma mentira.
85
O mal é uma irradiação da
consciência humana em certas situações de transição. Não é propriamente o mundo
sensorial que é aparência, mas o mal que carrega consigo e, seja como for,
constitui o mundo dos sentidos para os nossos olhos.
94
Duas tarefas do início da
vida: limitar seu círculo cada vez mais e verificar continuamente se você não
está escondido em algum lugar fora do seu círculo.
103
Você pode se conter
diante dos sofrimentos do mundo – é algo que tem liberdade de fazer e
corresponde à sua natureza, mas talvez seja esse autocontrole o único sofrimento
que você poderia evitar.
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