Obra imatura, de Mário de Andrade
Por Pedro Fernandes
Mário de Andrade se dedicou à ficção (em suas mais variadas formas), à poesia, à crítica de arte, à música, e à pesquisa sobre manifestações da cultura popular brasileira; autor de vasta obra e nome dos mais importantes para o Modernismo no Brasil, o escritor morreu em 1945 e deixou-nos mais de vinte livros, alguns deles já clássicos, como Paulicéia desvairada, Macunaíma e Amar, verbo intransitivo.
O que os leitores de sua obra davam por falta é da edição Obra imatura que foi relançado agora em fevereiro pela Editora Agir; esse título reúne três obras essenciais para entender parte das múltiplas faces de Mário: Há uma gota de sangue em cada poema, o primeiro livro do autor, publicado em 1917 e que apresenta treze poemas; Primeiro andar, uma seleção de contos escritos entre 1914 e 1922; e o ensaio A escrava que não é Isaura, que mostra o pensador e estudioso das vanguardas, ainda que não tenha sido um privilegiado como foram outros do seu tempo em verificar in loco a expressão da diversidade artística no principal berço do Ocidente, a Europa.
O tom do primeiro livro, inspirado pelos acontecimentos da Primeira Guerra Mundial, está muito de acordo com certo decadentismo de fim de século recorrente noutras obras da literatura brasileira de então. Penso em A cinza das horas - e mesmo Carnaval - de Manuel Bandeira, Espectros de Cecília Meireles, os Poemas da triste alegria de Carlos Drummond de Andrade, para citar alguns. É o tom melancólico, intimista e por vezes predisposto à libertação dos modelos mais cerrados dominante na nossa poesia de então. Mário de Andrade assinou o livro de 1917 com o pseudônimo de Mário Sobral e Bandeira o leu achando "ruim esquisito", expressão que não deixará de ter agradado o poeta.
A primeira edição de Primeiro andar data de 1926 e de lá para cá mereceu algumas reedições; a terceira tal como se apresenta agora, na estabelecida coleção da obra completa pela Martins Fontes em 1960. Mário designa esses contos como cheios de "muita literatice, muita frase enfeitada". Respeitando os interesses do autor, o livro reúne onze histórias, substituindo-se três delas em relação ao conteúdo da edição feita para a Casa Editora Antônio Tisi. Situadas entre o campo e cidade, as narrativas lidam com a ampla variedade de sentimentos humanos e comportamentos sociais.
Escrito em plena efervescência do ideário modernista no Brasil, no ano de 1922, o ensaio A escrava que não é Isaura serve a múltiplos propósitos; captura de parte da mentalidade então predominante, manifesto acerca da nossa literatura no âmbito do modernismo, registro do escritor acerca de sua compreensão e feitura do seu projeto e da sua obra, Mário de Andrade trabalhou longamente neste texto que saiu um ano antes de Primeiro andar.
Obra imatura trata-se então de um desses livros para inserção do leitor no mundo-Mário-de-Andrade, bem como uma maneira de revelá-lo em construção como escritor e como pensador. O melhor de tudo é que não é um livro que tenha sido organizado mais tarde por um pesquisador depois de catar coisas soltas ou possíveis de ser tratadas e apresentadas como inéditas, como tem sido moda corrente e filão para as editoras. O livro foi preparado pelo próprio escritor como parte do sério exercício de reflexão que empreendeu acerca de sua obra. O imaturo com que designa esses três livros, entretanto, quer menos reduzir e mais ressaltar a qualidade o aspecto de juvenília, o seu "ruim esquisito", em relação ao restante da obra ou da maturidade que, para alguns críticos, só chegaria na poesia como Remate de males, em 1930, e na prosa com Macunaíma, em 1928.
Isto é, no mesmo instante em que o leitor entra em contato como um escritor e um pensador em construção, compreende que foi uma preocupação do próprio Mário de Andrade em estruturar sua obra, quando pôde observar mais ou menos o ordenamento de um projeto que resultou num edifício literário. Duvido que grande parte dos escritores pense antes da elaboração naquilo que futuramente é lido como sua obra como um itinerário, assim, de maneira tão objetiva. Muitos textos, afinal, são produzidos no calor das idéias e, durante a produção, interseccionam com aquele trabalho já escrito, por exemplo. Mas, duvido de igual maneira que um escritor na sua maturidade não se deixe levar por uma necessidade de estruturação sobre o que escreveram.
Obra imatura é parte desse processo de amadurecimento de Mário; basta ver o título que cunhou para esses textos e a extensa revisão que empreendeu nos contos aí reunidos, por exemplo. É, certamente, uma antologia indispensável a quem nutre interesse de ver o escritor em reflexão sobre seu trabalho e, cá entre nós, de imatura, a obra só tem mesmo o adjetivo que compõem o título.
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