José Luandino Vieira, a revolução é uma maneira de estar no mundo
“A Literatura se alimenta de
Literatura. Ninguém pode chegar a escritor se não foi um grande leitor.”
A afirmativa que poderia sair de
qualquer escritor aparece numa entrevista de José Luandino Vieira realizada por
Joelma G. dos Santos e publicada na edição 21 da Revista Investigações,
do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco.
No caso do escritor, trata-se de uma expressão importante, uma vez que, noutra
passagem desse referido diálogo ele afirma que sua obra se baseia a partir da sua
experiência e das leituras, sendo que a primeira foi obtida em grande parte da segunda.
Seja como for, para ele a memória
guarda importância singular para a feitura de sua literatura. Diz noutra entrevista,
agora para o jornal O Globo, de 17 de novembro de 2007: “Minha ficção
sempre se alimentou da memória. É do que se inscreveu na memória que retiro o
material que submeto a todos os maus-tratos possíveis até perceber se é válido
para justificar meu trabalho sobre ele. Da actualidade conheço pouco. Mas
revela-se-me permanente e com persistência o que em minhas memórias de mais de
meio século se inscreveu – e não apaga. Tenho minhas minas para garimpar.”
Luandino Vieira nasceu em Vila
Nova de Ourém, em Portugal, a 4 de maio de 1935. Por opção, prefere ser apresentado
como angolano. Ele fez parte da grande leva de colonizadores que deixaram seu
país para viver numa das colônias; seus pais foram para Angola e é em Luanda,
capital do país, onde passa toda a infância e juventude. Na formação dos
primeiros movimentos revolucionários em torno da libertação colonial, chegou a participar
na luta armada. Todo esse envolvimento político rendeu-lhe uma série de
detenções: em 1959, pela polícia política portuguesa por se manifestar contra a
ditadura; em 1961, por incitação à violência e à revolução independentista. Foi
na cadeia, aliás, que recebeu o Grande Prémio de Novela pelo seu livro Luuanda,
gesto fortemente censurado pelo aparelho de estado em Portugal, levando o
governo a extinguir a Sociedade Portuguesa de Escritores, mentora da premiação.
A liberdade só foi alcançada, condicionalmente,
sob um aparato de vigilância, em 1972, quando vai viver em Lisboa, onde
trabalha com o editor Sá Costa e inicia a publicação de sua obra escrita em
grande parte nas várias prisões por onde passou. Três anos mais tarde, volta a
Angola, onde assume várias responsabilidades ligadas ao setor audiovisual e cinematográfico
neste país, agora sob orientação do Movimento Popular de Libertação de Angola
(MPLA). Permanece aí até 1992 e trabalha em vários projetos como a fundação da
União dos Escritores Angolanos. O estopim dos conflitos civis leva-o de volta
para Portugal, onde vai viver na zona rural do Minho.
Há três anos foi indicado para o
Prêmio Camões, o mais importante para a literatura de língua portuguesa;
considerando-se um escritor morto, mesmo tendo publicado dois novos livros em
2006, preferiu recusar a premiação. Na ocasião, contrariando a atitude de José
Luandino Vieira, cujos motivos verdadeiros só se revelaram mais tarde, vários
nomes da literatura portuguesa sublinharam o valor da sua obra. José Saramago,
por exemplo, saudou o escritor dizendo ser “A sua obra, importantíssima”; para
Lídia Jorge, “Luandino Vieira é também um marco revolucionário pelo movimento
que criou em Portugal a favor da liberdade de expressão”; e José Eduardo
Agualusa disse que “A sua obra tem um enorme valor”.
Nos anos que se dedicou ao fazer literário,
ainda que tenha estreado na novela, José Luandino Vieira construiu uma
significativa obra como contista. Além do premiado Luuanda (1963),
escreveu A cidade e a infância (1957), Duas histórias de pequenos
burgueses (1961), Vidas novas (1968), Velhas histórias (1974),
No antigamente, na vida (1974), Macandumba (1978), Lourentinho,
Dona Antónia de Sousa Neto e eu (1981), entre outros.
A vida verdadeira de Domingos Xavier
foi a novela que assinala sua estreia na literatura, em 1961. E, nesta forma
literária, ainda escreveu João Vêncio. Os seus amores (1979). No
romance, são três os títulos: Nós os de Makulusu (1974), Nosso
musseque (2003) e O livro dos rios, o primeiro volume de uma
trilogia intitulada De rios velhos e guerrilheiros, em 2006.
Engajado e radicalmente inovador,
Luandino ajudou a consolidar a literatura angolana no período de luta contra a
colonização portuguesa, criando uma dicção literária única. A crítica costuma
observar sua prosa madura em comparação à de João Guimarães Rosa. Ele próprio,
na primeira entrevista citada no início do texto, diz que não teria escrito João
Vêncio. Os seus amores “se não tivesse como meu mestre e meu defensor, quer
dizer, defendendo minha retaguarda” o escritor mineiro. Depois de citar, da
nossa literatura, nomes como Erico Verissimo, José Lins do Rêgo, Jorge Amado é
outra vez o autor de Grande sertão: veredas que comparece, pela sua voz,
entre as influências: “Guimarães Rosa por suas personagens, por sua ética. As
questões éticas em Grande sertão, o diálogo do bem e do mal, e dum ponto
de vista óptico, ontológico... é verdade, eu não me aproximo muito da parte
filosófica. Tudo isso contribuiu para minha formação.”
A obra de José Luandino Vieira
no Brasil
É inegável que a literatura brasileira
foi grande determinante na formação das literaturas africanas de língua
portuguesa. Mais que a literatura de Portugal. Assim, é com certa vergonha que devíamos
olhar para a pouca circulação desses autores nossos vizinhos. Mia Couto, num
texto de 25 de março de 2008, recorda que quando Luandino Vieira estava preso
recorreu a Jorge Amado (talvez o interlocutor mais ativo entre escritores
africanos e da América Latina): “O angolano Luandino Vieira, que foi condenado
a catorze anos de prisão no Campo de Concentração do Tarrafal, em 1964, fez
passar para além das grades uma carta em que pedia o seguinte: ‘Enviem meu
manuscrito ao Jorge Amado para ver se ele consegue publicar lá no Brasil...’,
cita o escritor moçambicano.
Mas, só em 1982, a editora Ática
publicou entre nós um livro do escritor, o livro-motivo de toda polêmica entre
o Estado Novo e a Sociedade Portuguesa de Escritores, Luuanda. Quer
dizer, este foi possivelmente o primeiro título do escritor entre nós mais de
duas décadas depois e não terá sido por falta de Jorge Amado. Depois, a
Companhia das Letras desenvolveu seus interesses e chegou a reeditar o livro em
2006 e um ano depois publica A cidade e a infância. Depois disso, não se
sabe para quando conseguiremos acessar o restante da sua obra.
As três narrativas reunidas em Luuanda
retratam a dura realidade dos musseques angolanos ― os bairros pobres de Luanda,
onde o próprio autor viveu. “Minha preocupação era ser o mais fiel possível
àquela realidade. [...] Se a fome, a exploração, o desemprego, surgem com muita
evidência [...] é porque isso era ― digamos assim ― o aquário onde meus
personagens e eu circulávamos”, afirma. E, dura realidade à parte, Luandino
cria personagens memoráveis. Como vavó Xíxi e seu neto, que, sem
trabalho e sem dinheiro, não dispensa a camisa florida ou o amor de Delfina,
para desespero da avó (“Vavó Xíxi e seu neto Zeca Santos”). Ou o Garrido
Kam'tuta, atormentado pelo papagaio que ganhava as carícias que Inácia lhe
recusava (“Estória do ladrão e do papagaio”). Ou ainda nga Zefa e sua
vizinha, que disputam a posse de um ovo de galinha (“Estória da galinha e do
ovo”).
Já os contos de A cidade e a
infância anunciam algumas das características que se tornariam marcas do
escritor: a paisagem urbana e o contexto de pobreza e marginalidade de Luanda;
a oralidade pronunciada da narrativa; o convívio e a tensão entre negros,
brancos e mulatos; a crítica da modernização excludente. O livro reúne dez contos
entre os mais conhecidos do autor: “Companheiros”, “O nascer do sol”, “A cidade
e a infância” e “A fronteira de asfalto”.
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