Agustina Bessa-Luís: a romancista que sonhou sua obra
Por Carlos
Leme Câmara
Agustina
Bessa-Luís nasceu, em 1922, a 15 de outubro, um domingo, pelas seis horas da
tarde, em Vila Meã, no concelho de Amarante. Descendente de uma família rural
de Entre-Douro-e-Minho, pelo lado paterno, e de uma família espanhola de
Zamora, pelo lado materno, guardou como herança genética a região de Amarante:
“Sou um produto da região, como o vinho verde, que não embriaga mais alegra” (O livro de Agustina Bessa-Luís, Três
Sinais Editores, 2002). Banhada pelo rio Tâmega e com a mítica Igreja de S.
Gonçalo coabitando com a ponte, Amarante é uma cidade onde, pelo menos uma vez
por ano, o santo protector é abraçado pelos seus habitantes.
Após o casamento,
em 1917, os pais de Agustina, Artur Teixeira Bessa (1882-1964) e Laura Jurado
Ferreira (1897-1994), andaram entre seca e meca (Vila Nova de Gaia, Santas,
Póvoa de Varzim e Porto), passando alguns períodos no Doutor, na casa da
família materna em Godim – num percurso em tudo idêntico ao que conhecerá a
própria Agustina. Além desse caleidoscópio de andanças há também as férias
passadas na casa do Paço, das tias paternas, no lugar do Barral (Travanca,
Amarante), e numa casa em Cavaleiros, perto de Vila do Conde.
Mas é do confronto
entre o mar – “Tive a sorte de viver todo o período da razão até à adolescência
numa vila marítima [Póvoa de Varzim],
onde tudo era familiar, quase austero, mas pleno de liberdade” – e o Douro que
a escritora constrói parte substancial da sua obra. “[O Douro é a] província mais capaz de paixões governadas que há em
Portugal. É duro de se viver”, escreve num texto inédito, agora dado à estampa
– entre muitos outros inéditos – em O chapéu
das fitas a voar (2008), livro que pode ser uma porta aberta para melhor se
compreender a vida e a obra de Agustina.
A escritora
teve um irmão, três anos mais velho, que morreu no início da década de 70. A
julgar pelas suas palavrassem O livro de
Agustina Bessa-Luís, a mãe tinha uma queda especial pelo irmão (“com uma
expectativa que as mães têm ainda hoje pelos filhos varões”), enquanto ela era
protegida por Lourença, amada da primeira filha da sua avó Agustina, que a
defendia das palmadas da mãe, “que começava a achar-me desnaturada, fria,
ingrata e coisas assim”. Terá ficado essa cicatriz em Agustina – que lerá Freud
de fio a pavio como um romance e comentará que “depois disto nada fica intacto”
– como uma forma subliminar de ambivalência entre a raiva e a reparação tão
manifesta nas mulheres dos seus romances?
Quer da
infância quer da adolescência não guarda memórias infelizes – ou, se as teve,
libertou-se delas através dos romances, sem nunca, porém, guardar rancor às
suas personagens. Por mais perversas que sejam (como em O comum dos mortais, 1998, quando retrata as duas mais sinistras figuras
do Estado Novo (a dupla umbilical formada por António de Oliveira Salazar e
pelo cardeal-patriarca Manuel Gonçalves Cerejeira), Agustina ama as personagens
que cria. É uma espécie de concerto da felicidade entre o real e a ficção.
Aos quatro
anos já tem uma relação estreita com as letras. As primeiras leituras marcantes
– bem patentes em muitos dos seus romances – são o Antigo Testamento, numa edição
ilustrada por Gustave Doré (1832-1883), uma colecção de clássicos e uma
enciclopédia ilustrada trazidos pelo pai do Brasil, para onde partira aos 12
anos, em 1894, e criara riqueza, vindo mais tarde a gerir o Casino da Póvoa de
Varzim.
Entusiasma-se
também pelos folhetins de Sem família
publicados no Jornal de Notícias e
pelas histórias tenebrosas do escritor francês Paul Féval (1817-1887),
deleitando-se com Os mistérios de Londres,
de 1844. Pelos seus olhos, sonhos e imaginações já tinha passado as aventuras
de Texas Jack e do seu Jumper mas,
também, os enredos visionários de Júlio Verne (1828-1905) que prolongou com o
mesmo género de histórias um tudo-nada pícaras de Emilio Salgari (1862-1911).
Nos primeiros
estudos saiu-lhe a sorte grande com a professora D. Inês. Pintava-se e “usava
saias curtas com um desembaraço notável” (O
livro de Agustina Bessa-Luís). Os livros e as sessões de cinema, garante, acabaram
por fazer dela romancista. Perspicaz e provocadora, relata essa iniciação na
mesma obra: “Tudo o que eu podia desfrutar do tempo infantil me parecia vulgar
e estranhamente impróprio para mim. Eu amava a vida dos adultos, os seus
perigos, mistérios, paixões e desgraças. O erotismo da infelicidade depressa o
entendi como se fosse a vocação das Pessoas”.
Agustina
estará de novo na Póvoa de Varzim no Colégio das Doroteias, entre os seis e os
13 anos. Depois vai para um outro colégio e, mais tarde, recebe aulas de Latim
e Francês, no Douro. Não há passagem por qualquer outra instituição escolar.
Regressada
ao Porto, descobre a literatura americana, ela que para o fim da sua carreira
literária teria uma obstinação em perceber o que subjaz ao mundo dos vivos através
da leitura e interpretações várias de O coração
das trevas, de Joseph Conrad (1857-1924).
Aos 15 anos,
nas terras duras do Douro, escreve um primeiro romance, intitulado Ídolo de barro, a que seguirá um outro, Água da contradição. Por iniciativa do
pai ambos serão dactilografados – no entanto, à semelhança de outros originais
desses primeiros tempos de escrita, mantêm-se até hoje inéditos.
Conclui Os Super-Homens para a Portugália mas
toma a decisão de retirar o livro do mercado com a justificação de – segundo
refere em O livro de Agustina Bessa-Luís
– ser “meio falhado por ter mais pretensões do que razões”. Com 19 anos, regressa
à Invicta. Confessa que “trazia uma informação intelectual bastante bizarra”.
Lê as obras do dramaturgo Eugène Labiche (1815-1888) para não esquecer a língua
francesa e O elogio da loucura, de
Erasmo (1469-1936), para não perder o contacto com o latim.
É nessa época,
que, ironicamente, pensa pela primeira vez no casamento. Por que razão? “Porque
a solteiria me distraía de maiores realidades” (O livro de Agustina Bessa-Luís). Se assim o pensou melhor o fez.
Pôs um anúncio num jornal para conhecer alguém que tivesse determinadas
qualidades. Acertou logo à primeira e começou a namorar com Alberto Luís.
Depois de
uma troca de cartas, encontraram-se pessoalmente no Porto – e casam-se a 25 de
julho de 1945. Há fotografias em que Alberto Luís acompanha Agustina com os
olhos postos no chão: ela visivelmente bem-disposta, ele sorrindo com alguma
timidez. Vivem em Coimbra e no Porto, depois em Esposende durante cinco anos –
onde ela escreve muito, passando a ser conhecida por “eremita de Esposende”.
Mais tarde, regressa de novo ao Porto, onde passaria a residir na Rua do Gólgota.
Ainda hoje,
para a escritora, é do domínio do mistério quem decifrou a sua letra leve e inclinada.
Posteriormente, será o marido que, amorosa e dedicadamente, lhe lê os manuscritos
e os dactilograva. Dia após dia, ano após ano, todos os mundos inimagináveis
que se vão impondo na ao contrário: por detrás desta grande mulher esteve
sempre um grande homem.
Pode ter-lhe
parecido pacata, arrastada, sem imaginação, mas é na cidade banhada pelo rio
Mondego que escreve Mundo fechado. O
livro foi dactilografado por iniciativa
do pai, corria o ano de 1948, chegando às montras e aos escaparates das
livrarias em 1950, na colecção “Mensagem”, dirigida por José Vitorino de Pina
Martins.
A escritora
não perde tempo: envia exemplares a Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro,
Miguel Torga e Teixeira de Pascoaes. O fundador da revista A Águia felicita-a com o maior entusiasmo numa carta datada de 2 de
janeiro de 1950: “Minha muito ilustre camarada! Peço-lhe [perdão] de joelhos, de não ter agradecido já a gentilíssima oferta
do Mundo fechado. [...] Trata-se duma
escritora de raça, dotada de excepcionais qualidades visionárias e do instinto
do real”.
As suas
leituras continuam a ganhar outros voos com Madame
Bovary, de Gustave Flaubert
(1821-1880), e criará até uma personagem com o epíteto de a Bovarinha, interpretada por Leonor Silveira, no filme Vale Abraão.
O seu ano de
glória é 1953, quando concorre com A
sibila ao prémio da editora fundada em 1899 por Delfim de Guimarães.
Leitora dos escritores russos, em particular de Dostoievski, esconde-se por
detrás do pseudónimo de Stravoguine. Em O
chapéu das fitas a voar, confessa: “Não tenho entre os escritores russos
gente que não convidasse para minha casa, para ouvir e contar histórias, para confiar
sentimentos que balançam o coração, com um ligeiro gemido de portas e soalhos como
violões de cordas secas e retesadas em excesso”. Vista e aclamada pela crítica
literária como um símbolo de representação do feminino e do seu poder ancestral
nas letras portuguesas de então, tudo ou quase tudo já se escreveu sobre esse
genial livro da romancista.
Luara
Bulger, quando a apresentou na homenagem que a Porto 2001 organizou – “Vozes e
olhares no feminino”, iniciativa coordenada por Isabel Pires de Lima –, resumiu
em poucas palavras a grandeza de A sibila:
“Quem diria que a história da tia Amélia, como refere a autora, se iria
transformar nessa obra-prima da nossa Literatura que é A sibila, obra inovadora não só pela temática, pela linguagem ou
pelas estratégias narrativas utilizadas como também pelo tratamento dado à
personagem central Quina, evocada pela memória de Germa”.
Além do
Prémio Delfim Guimarães, ganha, em 1954, o Prémio Eça de Queirós instituído
pelo Secretariado Nacional de Informação. Na Guimarães vai encontrar como companheiros
de escrita figuras como Ferreira de Castro, Joaquim Paço d’Arcos e Vitorino
Nemésio (no romance) ou Sophia, David Mourão-Ferreira, Herberto Helder e José Carlos
Ary dos Santos (na poesia).
Dedica A sibila a Maria Leonor da Cunha Leão e
será o filho da homenageada, Francisco da Cunha Leão, o editor da obra
seguinte, Os incuráveis (1956). A
relação estabelecida entre os dois, diz o ex-proprietário da Guimarães
Editores, “era amigável mas não íntima, mantendo uma certa ética na sua relação
com o editor”. Agustina entrega as provas (só revia duas) sempre a tempo e
horas. “Escrevia de rajada e não havia inconstância de estilo”, sustenta
Francisco da Cunha Leão.
Desde esse
ano, a explosão literária de Agustina – do romance às biografias passando pelo teatro,
crónicas, memórias, textos ensaísticos, obras infanto-juvenis e alguns
argumentos que fez para Manoel de Oliveira filmar a partir das suas novelas
e/ou romances – não tem equivalente na literatura portuguesa da segunda metade
do século XX.
Prémios e
distinções sucedem-se, sendo de realçar o Prémio Camões que recebeu em 2004,
aos 81 anos. Conquistou também, por duas vezes, o Grande Prémio de Romance de
Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores: com Os meninos de ouro (1983) e com Jóia de família (2001).
Nas declarações
que faz é contida. “Sinto sempre alegria...” ou “Estou muito honrada...” e fica-se
por aqui. O mesmo acontece quando a crítica entra em delírio com este ou aquele
livro e suspeita-se mesmo que, sem a desprezar, não lhe atribui muita importância.
Em contrapartida, é muito sensível ao que lhe dizem os seus companheiros de escrita
e, ainda mais, o que os leitores partilham com ela – passando, horas a fio, a
tagarelar nas feiras do livro ou em encontros a propósito de tudo e de nada. O
que não é pouco, se a compararmos com outros romancistas que alcandoram nas
suas torres de marfim.
Como explicar
essa explosão? Primeiro porque tratava por “tu” o que fazia – com paixão,
arrebatamento, reflexão e muita investigação. Por hábito ou por disciplina,
levantava-se muito cedo. Tratava das plantas no jardim e descia o olhar sobre o
Douro. Escrevia até à hora do almoço e, a seguir à refeição, voltava de novo
para a secretária com uma manta no colo. Parava para um breve lanche – “que era
quando nós”, recorda a sua filha Mónica, “podíamos falar com ela” – e recomeçava
até à hora do jantar, por volta das oito da noite.
No final, os
seus romances incluem a data de conclusão e por vezes o local onde foram escritos,
mas não há uma especial ligação da autora com esses lugares: Agustina chega ao
ponto de revelar, como no recente Dicionário
imperfeito (organizado por Manuel Vieira da Cruz e Luís Abel Ferreira), que
até gostaria de escrever num quarto de hotel... Certo, certo, é que os grandes períodos
de criação literária, se assim podemos dizer, são os balizados entre Esposende
e o Porto, na Rua do Gólgota.
A partir dos
finais dos anos 50 começa a viajar, altura em que Alberto Luís comprou um Volkswagen. Além da viagem a Itália (com
passagem por Espanha e França) pormenorizadamente descrita no belíssimo, mas
muitas vezes esquecido, Embaixada a Calígula
(1961), as outras viagens mais referidas por Agustina são as que fez ao Brasil
(1989), de que ficaram registos em Breviário
do Brasil, editado pela ASA (e integrado no ciclo “Os portugueses ao encontro
da sua história”, iniciativa do Centro Nacional de Cultura). Depois de uma
passagem pela Grécia com Sophia, em 1961, volta a uma das raízes da cultura europeia,
Rodes, acompanhada pela fotógrafa Luís Ferreira, dando origem ao álbum Azul, azul (Não-lugares), Ambar, 2002.
É visionária
e acutilante nas análises que faz: como esquecer O mosteiro, um dos mais agudos e inteligentes retratos de Portugal em
que D. Sebastião vai ganhando os contornos de uma mulher? Ou a mais que lúcida crítica
que faz ao cavaquismo em Os meninos de
ouro (1983)? Ou, ainda, essa obra incomparável A quinta essência (1999), verdadeiro tratado sobre os mistérios insondáveis
do sexo?
Onde situar
Agustina? Próxima das temáticas de Camilo Castelo Branco na construção das personagens,
não muito afastada da descrição de paisagens de Eça de Queirós, pós-moderna avant la letter na desconstrução das realidades
de onde parte para construir os seus livros, aparentemente provinciana mas
abrindo caminhos para perceber a universalidade dos homens, única num estilo
espirituoso, sarcástico, perverso, aforístico em muitos casos, marcado, sobretudo,
pela alegria de comunicar. Ela não escreve para ser aclamada mas para ser lida
pelos seus leitores ou... detractores, que só se convencem da sua genialidade
quando acaso lêem um livro seu.
A sua obra é
atravessada igualmente pelo Poder que a fascina, mais para compreender a sua
essência do que para exercê-lo. Nas eleições de 1969, Marcelo Caetano convidou-a
para as listas da Acção Nacional Popular. Agustina aceita mas não estava recenseada.
Já em regime democrático, Francisco Sá Carneiro
foi o “menino dos seus olhos”. Nas eleições presidenciais de 1976,
quando o PREC ainda ameaça incendiar o País, apoiou Ramalho Eanes. Nas eleições
mais empolgantes desde o 25 de Abril, em 1986, disputadas entre Mário Soares e
Diogo Freitas do Amaral, é mandatária nacional do segundo. Na primeira candidatura
presidencial de Jorge Sampaio, em 1996, integrou a comissão de honra do candidato
socialista. Dirige entre 1986 e 1987, o diário O primeiro de janeiro e é nomeada directora do Teatro Nacional D.
Maria II pelo então secretário de Estado da Cultura, Pedro Santana Lopes,
funções que exerce de 1990 a 1993. Sectores ligados ao teatro, mas não só,
vêem-na mais como uma “comissária política”. A actriz Eunice Muñoz, que não teve
com a autora de As fúrias – obra que
viria a subir à cena no Teatro Nacional – nem a menor nem a maior intimidade, é
peremptória: “Não concordo com essa visão porque não me parece que haja razões
para dizer isso. [Quem o diz] tem uma
opinião bastante desonesta”. E, como
seria de esperar, não só apoiou e esteve ao lado de Aníbal Cavaco Silva nas
eleições presidenciais como fez parte da sua comissão de honra.
Que dizer
mais? “Agustina é, depois de Fernando Pessoa, o segundo milagre do século XX
português e será reconhecida quando, com a distância, se puder medir toda a sua
estatura, como a contribuição mais original da prosa portuguesa para a literatura
mundial, ao lado do brasileiro Guimarães Rosa”. Palavras de António José
Saraiva, em Iniciação à Literatura
Portuguesa (Gradiva, 1994). E tem toda razão.
* Publicado
na revista Ler, em janeiro de 2009.
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