A lista negra de George Orwell
Por José Miguel Oviedo
Em 2003 cumpriu-se
o centenário de nascimento do escritor inglês George Orwell, famoso sobretudo
por seus romances A revolução dos bichos
(1945) e 1984 (1949), duas notáveis
alegorias (uma, satírica; a outra, aterradora) do totalitarismo que dominaria
boa parte do século XX. Por essas obras e outras como Homenagem a Catalunha (1938), testemunho sobre sua experiência na
Guerra Civil espanhola ao lado dos republicanos e de seu posterior desencanto
pela repressão de trotskistas e anarquistas que se abriu no setor comunista,
Orwell é reconhecido como um dos romancistas, ensaístas e jornalistas políticos
de maior importância em seu tempo e mais influente no nosso. Soube ver os perigos
da intolerância ideológica nos dois lados do espectro político e nos alertou
sobre o que poderia ser o mundo do futuro – o que hoje vivemos – se não defendêssemos
a liberdade e os valores democráticos.
Mas, precisamente
em 2003, em meio às celebrações e homenagens recebidas no mundo todo por seu
valor e sua lucidez moral socialista, descobriu-se um documento que abriu uma
grande interrogação sobre sua conduta intelectual. O documento não era desconhecido
(pelo menos em parte) pois havia dado origem a uma série de comentários e acusações
recaídas, por várias décadas, sobre o nome de Orwell. Mas foi no ano em questão
que a integridade do documento foi conhecida – identificado com o código FO
1110/189, o conteúdo pode ser consultado no Arquivo Nacional Britânico.
O primeiro
pesquisador que revisou a fundo e escreveu sobre ele foi Timothy Garton Ash, então
diretor do Centro de Estudos Europeus, em Oxford, e membro da Hoover
Institution, em Stanford, Califórnia. Num fascinante artigo publicado na New York Review of Books de 25 de
setembro de 2003, que pode ser lido quase como uma história de detetive, Ash
faz uma minuciosa descrição do documento, traça sua história e o complexo contexto
pessoal e ideológico em que se insere a lista.
São 38 nomes
de possíveis comunistas destacados por Orwell como pessoas do campo intelectual,
artístico ou jornalístico que são simpatizantes ou potenciais aliados do comunismo
cujas atividades devem ser observadas com atenção pelos organismos de Estado
empenhados na luta contra o avanço da estratégia totalitária no tenso mundo da
segunda pós-guerra; essa lista-negra é uma parte de outra, com mais de uma centena
de nomes, que figurava no caderno de apontamentos do escritor, hoje depositado no
Arquivo Orwell do University College de Londres. A lista final contém nomes de
gente tão famosa como Charles Chaplin, o dramaturgo J. B. Priestley, o ator Michael
Redgrave, o historiador Isaac Deutscher (biógrafo de Trótski) e outros menos conhecidos
ou esquecidos hoje. A informação que mostrar sobre eles é prolixa e bem
organizada para facilitar sua consulta. Há três colunas: “Nome”, “Profissão” e “Observações”;
junto aos nomes aparecem marcas privadas para destacar certas nuances: sinais
de interrogação, sublinhados com caneta vermelha, asteriscos, rasuras etc.
Orwell faz sutis distinções entre “possíveis comunistas”, “simpatizantes” ou “F.T.”
(fellow travelers); o nome do
historiador E. H. Carr é descartado como simples “apaziguador” e a outro
qualifica-o como “demasiadamente desonesto tanto para ser possível ou F.T.”.
Orwell
enviou a lista em maio de 1949 do hospital onde morreria de tuberculose no ano
seguinte à agentes do Information Research Department (IRD), um setor quase-secreto
que o Foreign Office organizou para cumprir tarefas de propaganda anticomunista
no pós-guerra. A história por trás do envio dessa lista é longa e cheia de incidentes
sutis que não são possíveis de pormenorizar aqui. Orwell tinha uma estreita amizade
com Celia Kirwan, uma charmosa mulher de tendências de esquerda pela qual
estava apaixonado e que trabalhava desde há algum tempo no IRD. Em março de
1949 Celia o visitou no hospital e lhe falou sobre as atividades da IRD,
apresentando-a como um importante instrumento de luta contra a propaganda
stalinista lançada pela União Soviética. Certamente com a intenção de apoiar
essa campanha e, secretamente, ajudar a essa mulher por quem estava apaixonado
(Celia, de maneira muito cortês, recusou esse aspecto de sua relação com o escritor),
decidiu preparar para ela a tão lista-negra a partir dos dados que colecionava –
dizem grande parte dos especialistas – por hobbie
no seu caderno de anotações. Orwell o fez sabendo bem que a lista continha informação
confidencial que podia ser considerada “caluniosa”; as supressões e rasuras
revelam o profundo dilema que o acometeu durante sua preparação.
Tudo isso
nos faz viver outra vez o clima da guerra fria, com as estratégias geopolíticas
e operações de propaganda que os Estados Unidos enfrentavam em relação à União
Soviética, as potencias antes aliadas e seus respectivos satélites e colaboradores.
Nessa guerra de informação, mesmo a cultura cumpriu um papel decisivo para estabelecer
a própria supremacia e frear a do outro. Houve também uma “guerra fria cultural”
que afetou a criação e a vida intelectual de todo o mundo, sem excluir, certamente,
a América Latina. Hoje é bem conhecida a conexão da CIA, como patrocinadora,
detrás da fachada do chamado Congresso pela Liberdade da Cultura, da revista Enconter e de sua versão espanhola Cuadernos para la Libertad de la Cultura, que, na década
de sessenta foi substituída por Mundo
Nuevo, dirigida – ao que parece, sem saber dessa conexão – pelo crítico
uruguaio Emir Rodríguez Monegal. Esta guerra fria cultural tocou também, de outro
modo, Orwell: o IRD patrocinou traduções de A
revolução dos bichos para várias línguas orientais e uma versão reduzida da
mesma obra, com uma projeção mundial.
A revelação
total destes feitos insere várias questões graves e difíceis de resolver:
Orwell converteu-se, justo antes da morte, num informante, num delator, num
vulgar divulgador manipulado por um organismo estatal? Orwell estava defendendo
a democracia ao chamar a atenção sobre certos inimigos dela, encobertos ou não?
Garton Ash examina com cuidado esses pontos e apresenta vários argumentos
possíveis para cada caso.
Por exemplo,
em defesa a Orwell invoca o feito de se opor à ideia de declarar ilegal o
Partido Comunista britânico. Não tentarei comentar ou ajuizar a validade de sua
argumentação, apenas expor minhas próprias conclusões sobre. Primeiro, um feito
à margem da vontade de Orwell, qualquer que fosse: nenhum dos nomes mencionados
na lista sofreu consequências sérias em sua vida ou em sua carreira – salvo por
problemas de trabalho de uma figura menor – pela simples razão de que o IRD não
seguiu suas pistas com demasiado entusiasmo. Na verdade, não aconteceu nada e a
lista ficou arquivada entre os milhares de documentos secretos dessa dependência.
O caso é moral, não policial, e tem a ver com a psicologia dos que, com Orwell,
sofrem uma conversão ideológica sob a pressão de grandes acontecimentos históricos,
semelhantes aos que viveu na Espanha, onde foi gravemente ferido num atentado comunista
contra sua vida. É frequente que a conversão política passe de um extremo ao
outro e converta as ideias que antes defendeu numa lista pelo seu contrário
enquanto se apega às suas novas convicções com a tenacidade de um catecúmeno. Isso
aconteceu muitas vezes e continuará acontecendo em nosso tempo: a transição de
um extremo ao outro só nubla a visão dos matizes. Assim, é caso que o novo
defensor dos valores democráticos combata a intolerância totalitária com
métodos muitas vezes dogmáticos. É significativo que Orwell – apesar de
detestar as listas negras do stalinismo – preparasse uma de possíveis ele mesmo e que o romancista
que denunciou o Estado policial regido pela vontade e a voz do Big Brother
apareça recomendando a vigilância de certos suspeitos. Mais penoso é aceitar-se
ser um pequeno elemento nas engrenagens burocráticas do Governo depois de haver
feito uma lúcida paródia desse purgatório estatal que contava com um “Ministério
da Verdade”. Os seres extraordinários cometem erros também extraordinários, por
debilidade ou cegueira. Aos que admiram Orwell gostariam que este episódio não existisse.
* Este texto é uma tradução livre de "La lista negra de Orwell", publicado em El País.
Comentários