Bocage
Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel das paixões que me arrastava,
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim, quase imortal, a essência humana.
De que inúmeros sóis a mente ufana
A existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.
Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Esta alma que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.
Deus... ó Deus! quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube!
Estes versos tão conhecidos na literatura de língua portuguesa, assente
nos vários livros didáticos brasileiros, são versos do poeta português Manuel
Maria Barbosa Du Bocage. Tido pela crítica como um dos maiores poetas do
Arcadismo em Portugal, movimento que se inicia quando da fundação da Arcádia
Lusitana, em 1756.
Bocage é nascido em Setúbal no ano de 1765. E morreu na capital
lusitana, Lisboa, em 1805. Filho de intelectuais portugueses, manifestou desde
pequeno temperamento irrequieto. Sua admiração pelo avô materno, o almirante
francês Gilles Le Doux Du Bocage, levou-o, aos 18 anos, alistar-se na Real
Companhia de Guardas-Marinha.
Terminado o curso náutico, Bocage embarcou para a Índia, onde serviu, em
Goa, até 1789. Foi promovido a tenente. Transferido para Damão, em seguida
desertou da Marinha. Viajou para Macau, na China, onde reabilitou-se, voltando
a Portugal em 1790. Uma vez em Portugal, Bocage sofre uma grande desilusão
amorosa: sua “Gertúria” — pseudônimo de Gertrudes da Cunha Eça — estava casada
com seu irmão mais velho, Gil Francisco.
Desiludido, Bocage caiu na via boêmia. Trocou versos por alojamento,
comida e bebida. Convidado a ingressar na Nova Arcádia, adotou o pseudônimo de
Elmano Sadino. Elmano, como se pode notar, é um anagrama de Manuel, seu
primeiro nome; Sadino, como era costume dos árcades, fazia referência ao rio
Sado, que banha Setúbal, cidade natal do poeta. Mas Bocage não era homem de
academias. Logo desgostou-se em discussão com o Pe. José Agostinho de Macedo e volta
à vida boêmia, frequentando botequins e escrevendo poesia pornográfica.
A publicação do primeiro volume de suas Rimas tornou
Bocage respeitado pela poesia lírica e conhecido pela poesia satírica. Sua
irreverência acabou por custar-lhe a própria liberdade. Em 1797, por ordem do
intendente do Santo Ofício, Pina Manique, Bocage foi enviado para o presídio de
Limoeiro, acusado de produzir “papéis ímpios, sediciosos e críticos”.
Tornou-se um novo Bocage quando saiu da prisão dois anos mais tarde.
Abandonou a vida boêmia. Passou a sobreviver das traduções que fazia das obras
de Ovídio, Racine, Voltaire e Rousseau. Morreu em 1805, vítima dum aneurisma.
Acerca de sua obra, podemos facilmente identificar, na fase inicial da
poesia de Bocage, uma acomodação de clichês árcades: pastores, pastoras,
ovelhinhas, ribeiros, prados tranquilos. O convencionalismo árcade.
Já se afastou de nós o Inverno agreste
Envolto nos seus úmidos vapores;
A fértil Primavera, a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste:
Varrendo os ares o sutil nordeste
Os torna azuis; as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros, e Amores,
E toma o fresco Tejo a cor celeste:
Vem, ó Marília, vem lograr comigo
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo:
Deixa louvar da corte a vã grandeza:
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza!
O que se assiste no conjunto de imagens assente ao poema dá conta do que
a crítica dita acerca do movimento arcadista, como locus amoenus,
marcado pela natureza idílica pronta a receber os amantes.
Mas Bocage não se prendeu a estes locais comuns à poesia da época. E é
isto o que o define como grande poeta. Uma vez já é sabido de todos que todo
grande escritor não se prende a rótulos, mas faz seu trabalho fora das órbitas
convencionais, inaugurando muitas vezes outros movimentos estéticos, ou
inovando os atuais, ou ainda criando movimentos que foge a própria
classificação pedagógica da crítica. Assim, a poesia de Bocage floresce. Ela
passa a carregar um lirismo carregado de subjetividade e sentimento, caracteres
já comuns à estética subsequente, denominada Romantismo. Esse caráter leva a
crítica a adotá-lo no ciclo dos chamados escritores pré-românticos. Os temas
que esse novo poetar bocagiano dão conta dizem respeito ao amor, à morte, ao
destino; o locus amoenus árcade logo substitui-se pelo locus
horrendus, com a natureza espelhando a dor e o sofrimento.
Fiei-me nos sorrisos da Ventura,
Em mimos feminis. Como fui louco!
Vi raiar o prazer; porém tão pouco
Momentâneo relâmpago não dura:
No meio agora desta selva escura,
Dentro deste penedo úmido e oco,
Pareço, até no tom lúgubre, e rouco
Triste sombra a carpir na sepultura:
Que estância para mim tão própria é esta!
Causais-me um doce, fúnebre transporte,
Áridos matos, lôbrega floresta!
Do tropel das paixões que me arrastava,
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim, quase imortal, a essência humana.
A existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.
Esta alma que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube!
Envolto nos seus úmidos vapores;
A fértil Primavera, a mãe das flores
O prado ameno de boninas veste:
Os torna azuis; as aves de mil cores
Adejam entre Zéfiros, e Amores,
E toma o fresco Tejo a cor celeste:
Destes alegres campos a beleza,
Destas copadas árvores o abrigo:
Quanto me agrada mais estar contigo
Notando as perfeições da Natureza!
Em mimos feminis. Como fui louco!
Vi raiar o prazer; porém tão pouco
Momentâneo relâmpago não dura:
Dentro deste penedo úmido e oco,
Pareço, até no tom lúgubre, e rouco
Triste sombra a carpir na sepultura:
Causais-me um doce, fúnebre transporte,
Áridos matos, lôbrega floresta!
Ah! não me roubou tudo a negra Sorte:
Inda tenho este abrigo, inda me resta
O pranto, a queixa, a solidão e a morte.
Comentários