Ortografia em reforma
Por Pedro Fernandes
Bem, se nada em nossa vida pessoal está, pós-réveillon, a passar por alguma mudança, este fato não se estende a tudo que nos cerca. Algo sutil está a passar por alguma mudança pós-réveillon. Algo que até o presente não tem causado ainda tanta estranheza a nós. A mudança que está para acontecer, ou melhor, que já vigora, diz respeito ao mundo das letras portuguesas. A partir deste mês de janeiro entrou em vigor - finalmente! - as novas regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. O acordo que em papel já há muito que bolava pelas gavetas e que passou por umas quantas cabeças de vários lados foi enfim passado à caneta oficialmente - aqui no Brasil em setembro do ano passado.
Tudo começou em 1990, quando representantes dos oitos países que integram a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa - CPLP -, que corresponde a Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Timor Leste, decidiram simplificar a grafia e unificar a ortografia. A implementação, no entanto, foi visivelmente lenta: 18 anos! Isso porque foi necessário que os países envolvidos na questão ratificassem as mudanças apresentadas pelo Congresso Nacional Brasileiro. A maior resistência à reforma viera de Portugal, o país que terá as mudanças mais significativas - estima-se que 1,6% do sistema lingüístico de lá passe pelo crivo destas mudanças. Mas tendo a ratificação de Portugal - coisa que só se deu ano passado -, enfim a reforma deslanchou e agora chega-nos tendo um prazo ainda de mais três anos até que sejam realmente incorporadas.
Já era tempo que essas mudanças viessem a ocorrer. O português, que segundo a Organização das Nações Unidas - ONU - é a quinta língua mais falada no mundo, o que corresponde a pouco mais de 230 milhões de falantes não poderia permanecer sendo representada por duas frações: um português de cá e outro português de lá. As diferenças entre o português falado em Portugal e no Brasil, por exemplo, são oceânicas, entretanto, ainda se "portugueseia" por lá e por cá e ambos os países ainda se fazem entender pela língua que falam. E mais: uma língua que queira está presente nos trâmites internacionais - levando-se em consideração a avalanche das mudanças decorrente de uma globalização - não se pode está presa a esses detalhes de uma falsa preservação, que em casos como estes tratam-se de defesas a interesses muito mais pessoais. Apesar de que quem decide as tais mudanças serem os donos do poder, os donos da língua são seus falantes. E sendo seus falantes em maior número aqui no Brasil, desses 230 milhões correspondemos a 170 milhões, não é justo ainda estarmos tendo de conviver com duas grafias distintas. Aumentaria o fosso entre as línguas, o que de já justifica a reforma como necessária.
Agora se põe as editoras a revisarem e reeditarem os livros didáticos e dicionários. Por aqui as mudanças chegarão primeiro. E escritores revisando suas obras em andamento ou modificando a forma de escrever suas novas obras, ainda que para muitos, como Ruy Castro, admitam já ter passado da idade de reaprender a escrever. Entretanto, ao que me parece, dada a sutileza dessas alterações que serão operadas no sistema lingüístico brasileiro só terão a facilitar o ensino de língua portuguesa por cá. Uma língua mãe cujo seus falantes são os que mais reclamam dela, dada a orbe de regras que povoam a gramática nossa, ficará, digamos, mas leve, livre de algumas regrinhas e também de alguns adereços bem particulares. Você vai ao supermercado e agora pedirá "um quilo de linguiça". Isso mesmo, sem o trema, que ficará de vez desempregado. (O chato vai ser sempre pedir correção no computador). Não terá mais enjôo no vôo, mas enjoo no voo. E as mães poderão continuar tendo ideias (também tudo sem acento - as letras dobradas e os ditongos abertos ficam nus de acentos) para registrar seus filhos sem dor na consciência, sejam eles Wesley, Kennedy ou outro qualquer estrangeirismo. Isso porque volta a ser incorporado no alfabeto as letras k, w e y. Essas são algumas da mais, digamos, "sofisticadas", mudanças. Mas haverá ainda outras. E não pára - ops! - Não para por aqui. (Também sem acento. Cai o chamado acento diferencial nesses casos.) Quando cair de pára-quedas precisava de um auxílio; quando contra-rega também precisava de uma mãozinha, agora não mais precisarão. São apenas paraquedas e contrarregras, sem o hífen - este só se manterá vivo nos casos de palavras compostas cuja segunda palavra começa com h como em pré-história. Aliás, este é o caso mais complexo (é preciso fazer consultas a uma boa gramática). Mas desempregado daqui o hífen será agora empregado em substantivos compostos cuja última letra da primeira palavra e a primeira letra da palavra seguinte é a mesma, como em microondas que vira micro-ondas.
Enfim, muita roupa suja ainda haveremos de lavar nós, os professores de língua materna. Se bem que acho que, assim, nem tanto...
* Texto publicado no Jornal Correio da Tarde, em 20 de janeiro de 2009; a versão aqui tem ajustes.
Comentários