John Updike, o reverso do sonho americano
Por Barbara Celis
John Updike. Foto: Dennis Stock. |
Já não haverá
mais livros polêmicos assinados John Updike. Ganhador de quase todos os prêmios
literários, exceto o Nobel, a voz imprescindível do colosso das letras
estadunidenses apagou-se para unir-se em silêncio às recentemente desaparecidas
de Norman Mailer ou Saul Bellow. Com eles compartilhou inquietudes da geração e
mais de uma acalorada discussão.
Updike, um
dos grandes cronistas das mudanças culturais e morais experimentadas ao longo
do século XX pelos Estados Unidos, ficará como responsável, entre outras coisas,
por elevar o adultério suburbano à categoria da alta literatura.
O escritor
morreu ontem, 27 de janeiro, em Beverly Farms, Massachusetts. Um câncer de
pulmão lhe tirou a vida aos 76 anos; anos que foram suficientes para que o
prolífico escritor publicasse 27 romances e 45 antologias com contos, ensaios,
poesia e crítica. Ainda tinha um livro por publicar, My father’s tears and other Stories que sua editora trará a lume no
final deste ano.
Ganhou duas
vezes o Prêmio Pulitzer por seus livros da tetralogia formada por Coelho corre, Coelho cresce, Coelho cai,
Coelho em crise e Coelho se cala paz, uma série
protagonizada por Harry Coelho Angstrom, personagem suburbano do qual Updike se
serviu ao longo de quatro décadas para analisar os piores aspectos do chamado
sonho americano. A linguagem utilizada nesses livros, assim como a descrição
das mulheres (as quais a personagem protagonista se refere sempre de maneira
pejorativa), proporcionaram uma chuva de acusações contra Updike por misoginia.
As acusações lhe perseguiram ao longo da sua vida literária, uma vez que esta
tetralogia foi se tornando um dos seus trabalhos literários mais reconhecidos.
Coelho, o
protagonista, é um homem que vive seu grande momento adolescente como jogador
de basquete numa cidade periférica e que, depois de se casar, começa a ver-se
preso numa relação infeliz, marcada por contínuas traições, um trabalho que não
lhe satisfaz, uma subida econômica fugaz até sua morte na Flórida com 56 anos,
uma condição que se repete suspeitosamente a milhões de estadunidenses.
O próprio
Updike o descreveu como o veículo para expiar suas angústias e seus
ressentimentos. Decidiu matá-lo em 1990 porque ele próprio estava doente e
tinha medo de morrer sem que seus leitores soubessem onde acabava a famosa
personagem. Não obstante, em 2001, Updike publicou um quinto volume intitulado Coelho se cala e outras histórias, em
que aparecem diferentes habitantes individuais dessa tetralogia.
“Ser um escritor
famoso é como ser um anão alto. Sempre estás no limite da normalidade”, disse
Updike a respeito de sua condição de romancista célebre. Era uma posição da
qual nunca desfrutou muito e nem mesmo quando Hollywood bateu à sua porta para
levar ao cinema seu livro As bruxas de
Eastwick se deixou aparecer em público além da conta. Nem mesmo com as
atrizes do filme, Michelle Pfeiffer, Cher e Susan Sarandon.
“Ser famoso
é um fardo, pequeno mas um fardo”, disse numa entrevista ao jornal Daily Telegraph. Além de misógino, também
foi acusado de racista e de falta de compromisso político e houve alguém, como
Norman Mailer, que criticou Updike por escrever para leitores ignorantes. Em
2008, Jonh Updike recebeu o nada lisonjeiro prêmio em reconhecimento a sua carreira
por um dos piores escritores a ficcionalizar o sexo na literatura.
John Updike. Foto: Harry Borden |
Mas, além
disso, em questões de estilo há poucos escritores tão aclamados como Updike,
que tenha se entregado aos detalhes e à poetização de praticamente todos os
temas que lhe tocam, da crítica de arte ao golfe. “Quero dar ao mundano um
toque de beleza”, comentou certa vez sobre o seu trabalho. Na entrevista ao Daily Telgraph disse: “Interessa-me descrever
as coisas com precisão, mas nunca me vi a mim mesmo como alguém que escreve
bonito”.
A revista The New Yorker foi a primeira a reconhecer
seu talento. Era 1954 e Updike, que desde pequeno sonhava ser desenhista de
quadrinhos, se entregou à escrita; era uma adolescente e fazia influenciado
pela mãe, uma escritora frustrada que trabalhava como vendedora. Havia crescido
numa cidade no subúrbio da Pensilvânia à sombra de um pai que perdeu seu
trabalho durante a Grande Depressão e que lhe ensinou valores que hoje parecem
perdidos, como o da necessidade de trabalhar muito para ir longe.
Estou em Harvard
e Oxford, onde também recuperou sua paixão de infância pela pintura e aos vinte
e dois anos bateu à porta da The New
Yorker com um poema, “Duet, With Muffled Brake Drums”, e dois meses depois com
um conto, “Friends from Philadelphia”.
No final dos
anos 1950, Updike já havia publicado seu primeiro romance, A feira, uma coleção de contos e outra de poesia. Mas, seu primeiro
Best-Seller chegaria em 1968 com Casais trocados,
onde expunha com todo detalhe a vida de casado desde seu ponto de vista mais
deprimente, o da traição, o do engano e o da frustração. O livro vendeu milhões
de exemplares.
Dois anos de
sua morte publicou uma coletânea de ensaios fundamentais para conhecermos suas paixões
artísticas: Beethoven, Edward Said ou Shakespeare. Falava da curiosidade pelas
últimas palavras. Quem sabe quais foram as suas.
* Este texto é uma tradução livre de "El reverso del sueño americano", publicado no jornal El País.
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