As pequenas memórias, de José Saramago
Por Pedro Fernandes
As pequenas memórias é um livro de emoções extremas; extremas, mas não gratuitas ou baratas como tem sido corrente hoje em dias de espetacularização. Seguindo um estilo que bem trabalhou nos cinco volumes dos Cadernos de Lanzarote - diários escritos desde que se mudou para um das ilhas do arquipélago das Canárias - mas, mais romanceado - coisa que nos cadernos apenas figura como notas - este livro de José Saramago é não apenas um feixe de recordações sobre a infância até o princípio da juventude. As pequenas memórias é um retrato sobre a formação de um escritor que, antes de tudo, é um interventor, um humanista.
Um livro de memórias a que ele chama “as memórias pequenas de quando fui pequeno”. Portador de uma poesia singela, esse livro reúne como num feixe fragmentos de memória ou os principais acontecimentos que levaram a Saramago ser a pessoa perscrutadora, reflexiva, humanista e interventiva que o é; compreensão que encontra base no que escreveu uma de suas leitoras mais consideráveis, Maria Alzira Seixo. Logo, antes de ser um livro sobre seu passado, é uma escolarização para a atual geração – em que tem vez a simplicidade e a dificuldade como valores modelares ao sujeito.
E é este um título gestado a largo tempo. Há muito que Saramago tinha o interesse de registrar os anos em que esteve mais ligado ao interior de Portugal, aqueles em que ia ficar com os avós, dois pequenos agricultores, e sua chegada em Lisboa. O escritor relata que desde Memorial do convento tinha a ideia e a partir de 1994, num dos volumes dos Cadernos de Lanzarote, confessa que essas memórias estão sendo planejada como título de O Livro das tentações. É nos diários que são feitos os primeiros registros textuais das memórias
da infância do autor.
Esse interesse se parecia mais com uma das sombras que lhe perseguiam na infância imaginativa e por isso, antes de ser As pequenas memórias, o escritor, embalado pelas visões de Hyeronimus Bosh, pensava atribuir ao livro o título de então; um título que, aliás, não é mal, muito embora seja este de agora o que melhor define, digamos assim, o que aí é narrado.
Alguns leitores da obra de José Saramago têm notado que, diferentemente de outros livros do escritor, este tenha sido mal recebido entre os brasileiros. Se olharmos para aquilo que se publica na grande mídia, de fato. Poucos são os comentários e a pequena repercussão não deixa de trazer certo ranço virulento que tenho olhado mais a figura política e civil do escritor que sua obra. Uma pena. Estarão, certamente, tomados da cegueira a que se refere o escritor no seu livro Ensaio sobre a cegueira. Uma figura apresenta-se, assim, tomada pelo avesso do que os holofotes da mídia têm construído, e é mal recebida.
Possivelmente esperavam de um livro memórias um apanhado de peripécias, como são comuns a outras vidas. Bem, até nisso nosso escritor alfinetou certa vez: as pequenas memórias narram apenas uma infância porque a vida mesmo sua não havia nada de interessante para contar. Sim, olhando muito de longe a vida pessoal de Saramago, é um homem que se difere de outros da sua estirpe: transmite-nos sempre a sensação de alguém que leva muito a sério o exercício da escrita, como se um labor diário, e não nega convite às intervenções para as quais é convidado. A decepção da crítica chinfrim é o de não encontrar na obra os temas de seu gosto.
As pequenas memórias é um título sobre a vida de alguém, mas é, sobretudo, para a vida de alguém; está aí como se dissesse ao leitor: vejam, vim daí e poderia não ter sido quem sou. Há um reconhecimento pelo gesto de romper com o ciclo vicioso da miséria a que estão condenados os que vêm dela. Este é um livro, também, de superação, de ruptura. As anotações esparsas, sem ater-se a um desenho cronológico do tempo, os freqüentes
intervalos de silêncio são marcas que, apesar de fazê-lo um livro breve, apesar de se referir a episódios de uma pequena parte da vida do escritor, o tomar o leitor, sempre, de uma reflexão grandiosa.
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