Raul Bopp



“Nascido em Pinhal, município de Santa Maria, criei-me em Tupanciretã, zona campeira. Meu espírito se formou dentro dos quadros rurais. Aquela paisagem dilatada, de horizontes livres, sem mistérios, terá certamente deixado em mim traços marcantes. Ela responde a uma relação espacial do homem com as distâncias. Delineou componentes sentimentais. Recolhi as primeiras emoções poéticas, de marca local, em sonetos de armação medíocre. Era um desejo natural de dizer coisas, sem preocupações literárias.”
 
O excerto é de um “Rascunho autobiográfico” que aparece em Vida e morte da Antropofagia, um livro de recortes em que o autor repassa um dos momentos cruciais do desenvolvimento da Semana de Arte Moderna realizada em São Paulo em 1922, evento que o teve como uma das personagens principais. O texto, igual ao restante da sua breve obra, padeceu de intervenções durante toda a vida; se por uma natureza ciosa do ofício ou por uma visível insegurança no trato com o literário, as contínuas intervenções na sua obra constituem, certamente, uma dor de cabeça para pesquisadores.
 
Raul Bopp começa sua vivência na literatura desde muito cedo. Já em Tupanciretã chegou fundar o jornal O lutador, em fevereiro de 1914 e dois anos depois entra para atuar como redator em Mignon. Foi nas páginas desses dois semanários que publicou seus primeiros poemas, muito antes de iniciar o curso superior de Direito em Porto Alegre para onde se mudaria em 1918.
 
É na capital gaúcha que se sente despertado para o interesse de conhecer o Brasil e transforma isso num projeto que resultaria na maneira inusitada como concluiu sua faculdade: fez um ano letivo na capital de uma região diferente do país — Recife, Belém e Rio de Janeiro. É na estadia no Norte que manteve contato com a Amazônia, talvez o lugar da experiência definitiva sobre sua imaginação. Basta citar aqui, a composição do seu principal poema, “Cobra Norato” que aparece a primeira versão pública uma década mais tarde.
 
“Ao chegar na Amazônia, senti que estava ante um cenário completamente diferente, de uma violência desconcertante. A linha constante de água e mato era a moldura de um mundo ainda incógnito e confuso. A impressão que me causava o ambiente, na sua estranha brutalidade, escapava das concordâncias. Era uma geografia do mal-acabado. As florestas não tinham fim. A terra se repetia, carregada de alaridos anônimos. Eram vozes indecifradas. Sempre o mato e a água por toda a parte.”
 
Logo depois desse registro, no mesmo “Rascunho autobiográfico”, Bopp esclarece que foi mesmo da estadia na floresta que rabiscou o famoso poema e outros textos avulsos: “Mãe febre”, “Pântano”, “Sapo” e “Cidade selvagem”. Esses textos, mesmo que o leitor não tenha passado por eles, antecipam certa força do acontecimento que se produziria em 1922, sobretudo, se olharmos para os títulos, o último deles em que se fundem duas imagens em impasse e tensão — a noção de urbanidade com a de ruralidade, ainda que prevaleçam as imagens alucinadas do floresta que se materializa através de uma linguagem que se faz híbrida, agora sim, entre o material urbano e o rural. Talvez seja interessante a leitura:

CIDADE SELVAGEM

Esta é a galeria das raízes aflitas,
Condenadas a alimentar lá em cima a grande selva, inimiga do homem.
Estorcem-se como enormes clavículas, esmagadas ao peso dos caules.

Os sapos, escondidos na sombra, espiam as árvores que não trabalham.
E os troncos sábios, enrugados numa toilette paleozoica,
Estudam, durante a noite, uma nova geometria selvagem para as folhas.

Cochicham, no alto, os cipós encurvados, tecendo intrigas à beira dos galhos,
Onde as orquídeas lânguidas balançam.

Movem-se as folhas do açaí, como pernas de aranha espetadas num caule.
Grita uma guariba, sacudindo as árvores que estão com sono.
No fundo, um pedaço da selva reclama silêncio.

Sozinha, abraçando as primeiras flores,
Acorda-se, cheia de susto, um pé de miratuá, intoxicada e franzina.
Bisbilham as folhas tagarelas, numa clareira do mato.
Súbito, um cururu, de sentinela, brada um ALTO LÁ!
QUÁ QUÁ QUÁ.

Entre os arbustos atônitos, passa lentamente a sombra austera de Jacques Hubert
Catalogando as umbelíferas.

Pia um pio... um longo assobio, entre risadinhas anônimas.
Depois toda a selva alarmada, ante a ingênua irreverência do sábio,
Se desata, do alto dos galhos, em largas gargalhadas de vaia:
QUÁ QUÁ QUÁ.

***
 

José Paulo Paes assim se refere à poesia de Raul Bopp, ou melhor, como sua poesia absorve o Brasil no âmbito dos vórtices do movimento antropofágico:

“O Brasil que Raul Bopp retratou no seu poema é o Brasil quinhentista de Vaz de Caminha, do padre Anchieta, de Magalhães Gandavo. Um Brasil aterrorizante e bárbaro, em que “as forças individuais, desamparadas na vastidão da terra novamente descoberta, aniquilavam-se, quase perdidas as origens e esquecidas de si mesmas”, [Gregório de Matos. 2 ed. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1910] como disse Araripe Júnior ao esboçar a sua “teoria da obnubilação”. Nesse Brasil antropofágico, que engolia o arrogante intruso português e o digeria no oco de suas selvas misteriosas, repletas de assombrações e gritos de mau agouro, viu Raul Bopp o solo propício onde lançar as sementes de um nacionalismo feito de “encadeamentos profundos”. Assim como a selva obnubilara o rapace conquistador europeu, assim também a arte antropofágica obnubilaria as veleidades cartesianas e o esnobismo cultural dos literatos de fraque e cartola.”

Ou seja, o espírito moderno de Raul Bopp só não antecede totalmente o que faz junto ao grupo de São Paulo, porque a aparição de sua obra é tardia. Mesmo “Cobra Norato”, concebido na aurora dos anos vinte só ganhará a primeira publicação em 1931 com capa realizada por Flávio de Carvalho. Sua posição de vanguarda no interior da vanguarda, obviamente, pode ser rastreada. Ou seja, não estará perdida no interior dos pretenciosismos que se formam a partir da Semana de 22. Esse livro fará história: seis anos depois recebe uma tiragem hoje raríssima, feita em 150 exemplares numerados e com ilustrações de outra figura interessante do modernismo mas curiosamente apagada, o ilustrador Oswaldo Goeldi. E a cada edição o poema passa por ajustes, como se a própria cobra assumisse o estrato de metamorfose (antropofágica?).
 
“Cobra Norato”, lido por Carlos Drummond de Andrade como “o mais brasileiro de todos os poemas brasileiros escritos em qualquer tempo”, além de outras edições solo, reaparece no livro Poesias (1947), em Urucungo (a edição 1956), em Potirum (1969), em Outros poemas (1973 e 1976, neste ano com ilustrações de Poty). 

Além destes livros de poesia, o criador gaúcho também escreveu prosa. Neste gênero podemos citar o Movimentos modernistas no Brasil (1966), Bopp passado a limpo por ele mesmo (1973) e vários livros de relatos de viagem, resultados da sua vivência-Brasil, das suas viagens ao redor do mundo, como a que faz em vários países do Oriente a bordo de um cargueiro, e da sua estadia como diplomata entre 1942 e 1973, período quando chega a morar nos Estados Unidos, Suíça e Peru.
 
A presença de Raul Bopp nos desenvolvimentos do evento de São Paulo é significativa. Basta recordar que é dele o carro abre-alas da Revista de Antropofagia, periódico publicado entre 1928 e 1929, um desdobramento que visava radicalizar ampliando algumas das proposições aparecidas nos primeiros estalos do modernismo. 

Mais tarde essa vivência seria importante pelos registros colhidos nas anotações quase de secretaria que serviriam para pensar alguns elementos que resultariam na Semana de Arte Moderna e mesmo na realização do evento e das suas primeiras repercussões, ainda que ele próprio não tenha participado daqueles dias no Teatro Municipal e não se detenha em compreender melhor as diretrizes ou no que consistiu o papel do evento desde então e em alguns casos pareça mais interessado em fomentar o anedotário de um mito. 

São singulares aqui os trabalhos Movimentos modernistas no Brasil (1966) e Vida e morte da antropofagia (1977). No primeiro, repassa sua participação no Movimento Antropofágico, o que se inaugura com o manifesto de mesmo nome publicado em maio de 1928; no livro seguinte aparece o texto “Magicismo do universo amazônico num poema”, uma revisitação ao solo do poema de 1931. É no ano de publicação dessa revisitação que recebe da Academia Brasileira de Letras o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto da obra.
 
Raul Bopp morreu no Rio de Janeiro a 2 de junho de 1984.



* Texto revisto em 12 de fevereiro de 2022.

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