Então é natal

Por Pedro Fernandes




O dia não fora em nada agradável. Aliás, desde os últimos meses que antecedem o do fim do ano, nada me tem sido agradável. Mas, na noite de vinte e dois de dezembro, depois de jantar qualquer coisa na rua, voltava para casa, já mergulhado na parede escura da noite – que em certos minutos fazia-se tão clara, porque é de praxe todos os anos por esta época do ano iluminarem-se pedaços de ruas com luzes de todas as cores e tamanhos. Caminhava rente as paredes dos muros a pisar os primeiros lixos da noite. Nos pares de tempo que a rua entrava no breu ficava pensando em algum assalto – os assaltantes caem da escuridão quando menos se espera, rouba-nos algo de valor e com ele parte da nossa parede de sentimentalismos que vamos erguendo ao longo de nossa vida. Mas nesta noite não. Não estive a ser surpreendido por nenhuma dessas aves negras. Fui surpreendido já no fim da rua, do alto da murada, com duas meninas que aparentavam uns sete anos cada – não reconheço o rosto porque estava escuro. De cima do muro me chamaram e me saudaram com um “um feliz natal”. Retribui a saudação. Deram-me uma flor bem pequenininha. Certamente haviam colhido do canteiro ao lado delas. Este curto episódio me emocionou muito. Relembro dele e certamente irei relembrar sempre. E, a título de que não se perca da memória resolvi relatar aqui no alto desse texto que, pode não parecer, mas se dispõe a refletir algumas questões em torno dessa data a que convencionamos o nascimento de Cristo.

Esta data, que para os que pensam comigo, nada significa, senão para dar corda às religiões e faz mover rios de dinheiro com um consumismo que é o que põe o capitalismo em movimento, repete-se, pois, pela bilionésima vez repleta dum tal de espírito natalino. (Não me feche ainda a porta na cara, leitor.) O espírito natalino é aquele que toma conta de todos a cada trezentos e tantos dias do ano e faz dos humanos, criaturas irreconhecíveis. E parece que sempre será assim: o mesmo espírito, as mesmas coisas, os mesmos desejos, tudo as mesmas. Isso só reforça o quanto vivemos presos numa circularidade sem fim, que se vivêssemos eternamente, certamente não chegaríamos a tanto, morreríamos de tédio justo por tais corriqueirices. Então, leitor, creio ter a razão de me recusar, por um instante, a dar corda ao mesmo blá-blá natalício. Passamos o ano a cometer erros dos mais estapafúrdios. Sim, porque a trajetória humana é um desastre, uma maldade sem fim. E no fim do ano pousamos com sorriso e cara de bons moços. A quem pensamos que estamos a agradar? Ou a quem pensamos que estamos a enganar? A resposta à primeira pergunta não tenho. Se o caro leitor, que desceu os olhos até aqui, tiver, que a dê. Tenho, no entanto, uma resposta à segunda: estamos a enganar ninguém, senão nós próprios. Infelizmente, nosso cérebro tem uma capacidade incrível de não se dá conta disso. Ele é dono de um mascaramento que propriamente se mascara para si. Como diz o dito popular, isso nem Freud explica.

Se então me proíbo de falar de lugares comuns, o que devo então fazer para dizer outra coisa que não as mesmas que por aí escrevem todos os anos os jornais? Retorno a singularidade e singeleza com que iniciei esta minha fala. O que quero de você, leitor, que desceu até aqui comigo não é o silêncio. Prefiro até a discórdia. Mas também não é isso o quero de você. O que quero de você é que leia comigo o que no fundo representa este episódio para quem escreve este texto. O que quero de você, caro leitor, é uma descoberta do que está se projetando como desfecho deste texto. Bem, se não mais rodeios, acabemos com o segredo. Este episódio que se passou comigo, poderia pô-lo bem ao lado com a cara de bons moços e sorrisos que deitamos as pencas por essa época do ano. Não fosse a inocência de quem fabricou esta cena... Mas, ainda assim, digo que esta cena e a das caras e sorrisos de bons moços que damos a praticar todo fim de ano estão sim uma ao lado da outra, porque elas nos dão conta de um lado que nós humanos também somos capazes de exercitar: o lado da razão – que é o que essencialmente nos divide entre o humano que somos e o animal que supostamente deixamos de ser. Não posso ler num episódio destes um reflexo contrário. Há, por que não, uma estrela no fim de tudo. Ou melhor, para fugir do óbvio, há uma flor, bem pequeninha, no fim de tudo. Já quase murchando. Mas ainda há.


*Texto publicado no Jornal Correio da Tarde em 26 de dezembro de 2008.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #607

Boletim Letras 360º #597

Han Kang, o romance como arte da deambulação

Rio sangue, de Ronaldo Correia de Brito

Boletim Letras 360º #596