A menina que roubava livros, de Markus Zusak
Por Maria das Graças Targino
Liesel Meminger enfrenta a morte cara a cara três vezes. Sobrevive de cara lavada. De tão impressionada, a Dona Morte, ela mesma, decide contar a história da menina, que se habituou, desde cedo, a roubar livros, como forma de prosseguir a viver e a sonhar em meio a mil palavras perdidas. A morte fala, e porque fala de mansinho, a princípio, não encanta. O livro tão festejado – A menina que roubava livros (The book thief) – tem começo enfadonho e desestimulador. Até para quem devora livros, a tentação de não prosseguir é grande. Mas, não leva muito tempo. Logo, é impossível largar a história de Liesel. É uma rua pobre de uma área pobre de uma Molching pobre, cidade próxima a Munique. É o período entre 1939 a 1943.
Vê seu irmão morrer no colo da mãe, aos seis anos. Vê seu irmão descansar num cemitério frio. Vê um livro deixado ao léu pelo coveiro apressado. Aos nove anos, com olhos assustados e com o primeiro livro roubado, oculto entre suas bugigangas, vê os pais adotivos: Hans e Rosa Hubermann, um pintor quase sempre sem nada para pintar e uma dona-de-casa sempre com muita coisa para reclamar. É um abandono por amor: a mãe entrega a filha ao casal alemão para evitar a morte no holocausto, como ocorrerá com ela...
A partir daí, Dona Morte, na função de narradora, brinca incessantemente com as cores (os olhos prateados de um homem morto; o céu de um vermelho devastador, desses feitos em casa; cabelos da cor de limões etc. etc.). E revela, então, sua faceta inesperada: lirismo exacerbado ante a bondade; complacência extremada com as almas que se deixam envenenar pelos requintes de maldade do nazismo, surram corpos e põem cicatrizes em outras almas.
Na verdade, Markus Zusak, origem judaica, australiano, de pouco mais de 30 anos, é um escritor que desafia a rigidez da narrativa tradicional. Autor de Fighting Ruben Wolfe , Getting the girl e I am the messenger (salvo engano, todos sem tradução para o português), costuma b rincar com as palavras, de forma quase incessante: céu lentamente retirado do fogão; avião que tosse; sala que encolhe; homens que se escondem entre as nuvens; céu que borbulha e se mexe; lençol de cascalho. Há mais, muito mais, eis:
As labaredas cor de laranja acenavam para a multidão, à medida que papel e tinta se dissolviam dentro delas. Palavras em chamas eram arrancadas de suas frases (p. 102, grifos nossos).
Talvez [os livros] estivessem molhados. Talvez a fogueira não tivesse ardido por tempo suficiente para atingir as profundezas em que se encontravam. Qualquer que fosse a razão estavam aninhados entre as cinzas, abalados. Sobreviventes (p. 110, grifos nossos).
A menina que roubava livros, editado pela Intrínseca, em 2007, e traduzido do inglês para diferentes idiomas, inclusive o português (tradução de Vera Ribeiro), é poesia pura. Poesia numa Alemanha em guerra. É a bondade perdida na crueldade das bombas, e que se manifesta ao longo de suas mais de 500 páginas. O amor tão grandioso de um pai adotivo, que nos faz chorar. Hans dá à filha as lições mais dignas que alguém pode vivenciar. Ensina à menina a desembaralhar as letras, descobrir o poder das palavras e se deliciar com o mundo encantado da leitura. Esse pai de amor, que, ao mirar a morte, se senta para facilitar seu translado aos céus, lhe repassa valores fundamentais: amor pelo outro, não importa se judeu ou nazista; perdão por ingratidões e incompreensões, como o próprio filho que o magoa com crueldade; lealdade aos amigos, cumprindo a promessa de acolher os desvalidos, independente do risco de sua própria vida; misericórdia pelos que sofrem, num gesto intrépido e insensato para socorrer judeus que seguem em rebanhos, dilacerados pela crueldade dos campos de concentração. Para Liesel,
[...] aquelas eram as mais pobres almas ainda vivas [...] Seus rostos macilentos esticavam-se pela tortura. A fome os devorava, enquanto eles seguiam em frente, alguns olhando para o chão, para evitar as pessoas [...] Alguns lançavam olhares súplices para os que tinham ido observar sua humilhação [...] Outros imploravam que alguém qualquer um, desse um passo à frente e os tomasse em seus braços. (p. 341).
Rosa não fica atrás. Sua bondade tarda a se manifestar. Por trás do corpo de guarda-roupa e do esbravejar contínuo, a mãe esconde profundas emoções. Estas vêm à tona, em surdina, nas noites solitárias, quando longe do marido na guerra, encontra refúgio no que restou – um violão silencioso e sem acordes. E há outros personagens que desfilam na vida de Liesel Meminger. Primeiro, Rudy Steiner, amigo de roubos e de traquinagens. Decerto, o primeiro amor. Aquele amor de criança, meio ternura, meio implicância. A menina decide saciar a vontade do beijo pedido pelo menino travesso e tantas vezes negado. Quando o faz, tarde demais para ele: a boca com gosto agre de morte e de saudade.
Max, o judeu do porão, amigo e cúmplice. A troca de presentes é antes de tudo a troca de afago e de ternura. De Max para Liesel, sempre palavras perdidas e pendidas de um coração assombrado de dor: primeiro, um livreto de 13 páginas, O vigiador , onde narra a descoberta de ter sido velado, em sua convalescença, noite e dia, dia e noite, pela menina; depois, uma fábula ou um conto de fadas, Sacudidora de palavras . Dela para ele, 13 singelos regalos, como forma de mantê-lo vivo, mas, sobretudo, a incumbência de lhe informar como está o céu lá fora, longe da escuridão do porão-refúgio:
Hoje o céu está azul, Max, e tem uma nuvem grande e comprida, espichada feito uma corda. Na ponta dela, o sol parece um buraco amarelo...
Naquele momento, Max soube que só uma criança seria capaz de lhe fornecer um boletim meteorológico desses. Na parede, pintou uma corda comprida e cheia de nós, com um sol amarelo e gotejante na ponta [...] Na nuvem encordoada, desenhou duas figuras – uma menina magra e um judeu murcho – e os dois caminhavam [...] eles andavam na corda bamba em direção ao sol (p. 223-224).
Há, ainda, a mulher do prefeito, uma amiga cheia de mistérios, que lhe oferece a dádiva de cumplicidade cheia de silêncio, como só é possível nas amizades mais verdadeiras. Há a vizinha rabugenta, como Rosa, que esconde muita dor... E, há, sobretudo, o veredicto final da Dona Morte: “os seres humanos me assombram”!
* Maria das Graças Targino é jornalista e pós-doutora em jornalismo pela Universidad de Salamanca / Instituto Interuniversitario de Iberoamérica. Texto publicado inicialmente em Uma coisa e outra - Literatura
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