Os livros, os discos e os filmes mais bacanas de 2008
Por Pedro Fernandes
Acompanhando algumas publicações recentes no mercado editorial vejo que
está muito em voga listinhas e listagens do que fazer, do que ler, do que
ouvir, de onde ir, e, por aí vai. Parece que estivemos durante todo esse tempo
da existência humana a juntar entulhos num armário e agora necessitamos de
escolher os bons e pô-los aos olhos desavisados ou daqueles que se sentem meio
perdidos dado o turbilhão de quinquilharias que se põe à venda nas vitrinas. Às
vezes fazemos questão de viver a fuçar a internet, a livraria, a
revistaria, as lojas de CDs em busca de alguma coisa inédita, que ninguém leu
ou ouviu sequer falar sobre.
Pois bem. Nesta época do ano as listinhas e listagens são muito comuns.
É um esbanja presente de um lado, um esbanja presente do outro. Não conseguir
ficar imune e logo tratei de montar também a minha listinha. É breve, sem
grandes ambições, mas que me marcaram muito o 2008. Não devia fazer isso porque
parece confissão pública, mas aí está, como este intuito ou não: uma listinha
particular de coisas que li, ouvi, vi.
Os livros (6 + 1)
1. A jangada de pedra, de José Saramago: o romance foi
publicado em 1986 e é produto de uma auge das discussões sobre a consolidação
da União Européia e entrada de Portugal para o bloco econômico. Beneficiando-se
de uma posição contrária à presença portuguesa num continente que toda vez o
país se sentiu deslocado, Saramago ironiza com a ideia de falha geológica,
separação geográfica no sentido estrito do termo, e dispõe Portugal e Espanha a
rodopiar oceano afora até encontrar um lugar algures no Oceano Atlântico numa
clara alusão à necessidade de a Península Ibérica aproximar-se dos países que
ela no passado, por bem ou por mal, tratou de colonizar. O romance bebe na
fonte do realismo mágico e é, por isso, invadido a sua condição política por
uma poética do estranhamento responsável por uma unidade artística de grande
relevo na tábua bibliográfica do escritor português.
2. As pequenas memórias, de José Saramago: a este título
acrescento mais outro do escritor português. Ensaio sobre a cegueira, que
tive oportunidade de ler no ano passado, mas como foi aí que criei este
blog e ainda não havia inventado uma lista como essa, faço questão de
mencioná-lo. O romance de 1995 é, ao meu ver, de grandeza maior até que as duas
obras indicadas aqui. Três títulos do mesmo autor? – poderão se
perguntar. Sim, e uma razão única: desde que "descobri" José Saramago
numa de minhas andanças pela biblioteca central da faculdade que não tenho
feito outra coisa, obsessivamente, que buscar ler sua obra. É também esforço de
alguém dedicado a pesquisar sua literatura. E é principalmente o encanto cada
vez renovado diante de uma de suas obras. As pequenas memórias é o
seu único livro de natureza autobiográfica. Mas o escritor não está interessado
em contar os pormenores de sua vida desde o nascimento até a idade adulta. Quer
apenas voltar ao tempo da infância a fim de perscrutar a criança que foi e o
que ficou dela na figura que é hoje. É um relato de tirar lágrimas do leitor
porque o escritor não polpa dizer sobre uma infância periférica e por isso já
rica de acontecimentos e imaginário que transfiguraria, tudo, no conjunto de
produções literárias escritas até o presente. Possivelmente deverei voltar a
esses títulos em leituras para este blog.
3. Navegos – A herança, de Zila Mamede: ao contrário do escritor
português, esse nome não é um dos mais conhecidos dos leitores, sequer dos
brasileiros. Zila é paraibana e veio morar no Rio Grande do Norte ainda muito
jovem e no estado construiu seu nome como uma das figuras mais importantes
sobre o livro e, claro, sobre a literatura aí escrita. Poeta de ofício e
bibliotecária de profissão – as duas posições que a colocam nos anais
da história potiguar. É reconhecendo a importância da poeta, que a editora de
Universidade Federal do Rio Grande do Norte publicou uma rica edição que reúne
sob o título criado pela própria Zila, Navegos, toda a obra poética sua.
Além disso, o título apresenta um conjunto de poemas até então inédito "A
herança". Pela riqueza do trabalho e pela força da poesia mamediana, este
é um título indispensável às listas de um leitor potiguar. Até recorto a seguir
um trecho do inédito agora publicado:
Trocas e vendes, rateias, irmão,
papel, breviário, terço, salmodia
por contas-correntes, livros-razão?
Nas alvas rendas-linhos dos roquetes,
negas o medo da batina negra
à luz da procissão pentecostal?
Dos tomos sacros (Bíblia, Epistolário,
Atos), da liturgia dos sermões,
das cifras do governo, do varejo
vais aos intertextos – quixotes, eças,
inácios de loyolas, alencares –
juntando as tantas bi-tribulações?
Verdíssimo ainda enclausurado foste:
a mãe te olhava só como a artesã
que forma te deu, vida em ti cerziu.
Remanejaram em barcos à deriva
a tua herança – carga em raso curso
feito canoa, feito a canoinha
de papel pautado que nas valetas
fazias descer, cheia de letrinhas:
português, latim, grego, espanhol,
de quebra o inglês. Eras o primeiro
nas traquinações. Saíste do claustro
sempre em calendário de tributações.
4. A menina que roubava livros, de Marcus Zusak: é um certo afã
adolescente que faz trazer esse título para uma lista que amarra os escritores
e as obras que amarra. Mas é um título que se estrutura de maneira tão bem
acabada e tem um enredo tão significativo que não resisti inseri-lo aqui.
Liesel Meninger tem sua trajetória contada pela Morte, quem se afeiçoa da
menina ainda pequena que sobrevive ao nazismo e sobrevive no subúrbio de uma
cidade alemã depois de ser vendida junto com o irmão. Entre a fuga para a
adoção comprada Liesel perde o irmão e é no enterro que ela encontra um livro
largado pelo coveiro, o primeiro de uma série que ela vai surrupiar ao longo
dos anos construindo para si sua existência e uma biblioteca muito particular
que lhe é companhia na extensa solidão a que está metida, mesmo em companhia de
uma família nova.
5. No país dos homens, de Hisham Matar: este é o título de estréia
de Hisham Matar. Conta a história de um menino de nove anos que vê seu infantil
invadido pela violência e opressão instaurada pelo regime ditatorial de Muammar
Al-Kadhafi, em 1969. É um livro delicioso por recuperar certa inocência da vida
de criança: as brincadeiras de rua, os passeios no mercado e as viagens com os
amigos. Mas é também um livro pesado quando, progressivamente, essa beleza
infante é invadida pelo pesadelo da morte que ronda a todo instante essa
existência. A posição obscura do mundo, castra o que de infância poderia restar
a esse sujeito e ele logo se vê tomado de responsabilidade por tentar dar ordem
ao caos que se instala em sua vida: além do regime para o qual o pai decide
reunir-se com amigos para colocar abaixo, é o alcoolismo da mãe e, claro, os
horrores da ditadura.
6. A rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade: a obra dispensa
apresentações e ela é responsável por criar na minha vida recém-nascida de
leitor um páreo duro de figuras pelas quais vou construindo uma sincera
admiração. Além de José Saramago, o poeta brasileiro vai se firmando com alguém
do meu apreço, claro, pela escrita. Os horrores da ditadura sobre os quais
visualizo em Hisham Matar, os horrores da Guerra Mundial em Marcus Zusak, ou
ainda os temas da memória e da conjuntura política que citei ao apontar a obra
de Saramago estão contidas nesse conjunto de poemas que é, sem dúvidas, um dos
pontos altos na obra de Carlos Drummond de Andrade. De modo que, é uma obra
para se ter na cabeceira e voltar a ela sempre. Como fiz sobre a obra de Zila
Mamede citada nesta lista (Zila aliás confabulou em algumas correspondências
com o poeta mineiro), deixo um dos pontos altos dessa obra.
ÁPORO
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e mistério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
Os discos (3)
1. Samba meu, de Maria Rita: é uma investida diferente da
filha de Elis Regina que começou com discos de pegadas mais leves e próximas do
que comumente chamamos de Música Popular Brasileira. A cantora dedica-se ao
samba, ritmo que não está ainda na minha pauta de gostos musicais. Coloco o
título nessa lista porque é inventiva de Maria Rita que deu certo com um
repertório que vai de Gonzaguinha a Arlindo Cruz. Claro que ainda prefiro os
trabalhos anteriores da cantora e claro que compreendo a onda sambista como um
momento de passagem de alguém que tenta fugir o rótulo da imitação que a
crítica sempre tem feito sobre o trabalho de Maria Rita. A resposta poderia ter
sido cantar as músicas que mãe cantou a fim de dizer que ela é ela e Elis é
insubstituível. Não fez. Foi para uma seara que está provado não é a praia da
cantora.
2. All the lost souls, de James Blunt: falem o que falar, mas esse
trabalho que vem depois do hit que de tanto tocar ficou meloso
"You're beautiful" é o disco para dizer a que veio o canto inglês
apadrinhado por ninguém menos que Elton John. Buscará o rei-pop um substituto à
altura? Possivelmente. Mas, Blunt tem estilo próprio. De fala mansa está entre
o pop e o rock. Perdi as contas de quanto ouvi músicas como "1973",
"One of the brightest stars" e "Annie", claro, que fogem do
tom meloso que o consagrou em 2006.
3. Paralamas e Titãs, juntos e ao vivo, de
Os Paralamas do Sucesso e Titãs: o rock nacional está na UTI e respira com
forte tendência à morte. Mas o encontro entre duas bandas fundamentais da cena
desse estilo no Brasil é uma aposta interessante sobre esses últimos suspiros.
O disco entra nesse rol porque é como se fosse uma tomada de iniciativa em
ainda conseguir extrair algo que valha nesse cemitério. Há muita coisa que vale
a pena pular a faixa, mas há retornos que valem a pena ouvir sempre como
"Meu erro", "Flores", "Comida" ou "Homem
primata". Entre uma e outra banda, tá, eu prefiro as duas. Não totalmente:
Paralamas tem mais coisas a dizer que Titãs, cada vez mais, caído num fim sem
sentido.
Os filmes (5)
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