Com licença poética, a poeta (e a poesia de) Adélia Prado

Com licença poética

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.





Uma das mais remotas experiências poéticas que me ocorre é a de uma composição escolar no 3º ano primário, que eu terminava assim: Olhai os lírios do campo. Nem Salomão, com toda sua glória, se vestiu como um deles... A professora tinha lido este evangelho na hora do catecismo e fiquei atingida na minha alma pela sua beleza. Na primeira oportunidade aproveitei a sentença na composição que foi muito aplaudida, para minha felicidade suplementar. Repetia em casa composições, poesias, era escolhida para recitá-las nos auditórios, coisa que durou até me formar professora primária. Tinha bons ouvintes em casa. Aplaudiam a filha que tinha muito jeito pra essas coisas. Na adolescência fiz muitos sonetos à Augusto dos Anjos, dando um tom missionário, moralista, com plena aceitação do furor católico que me rodeava. A palavra era poderosa, podia fazer com ela o que eu quisesse.

A autora do poema que abre este texto e do depoimento que acabamos de ler é Adélia Prado. Ela nasceu em Divinópolis, município de Minas Gerais de onde só saiu nas muitas viagens que passou a realizar depois do estouro que foi a publicação do seu primeiro livro, Bagagem, ciceroneado por ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade, o autor referido intertextualmente no primeiro poema desta obra, o que reproduzimos acima.

Adélia Prado é do Dia de Santa Luzia, 13 de dezembro de 1935. Como muitos brasileiros país afora, a presente cultura católica inferiu na designação do seu próprio destino. O nome da santa do seu dia está impresso no nome, Adélia Luzia. Seus autores foram um ferroviário e uma dona de casa, mas a Adélia que se revelou poeta se criou nos mistérios e desígnios da religião. É da cultura católica, inclusive, que modelou parte da sua própria noção do poético, da criação e de uma mentalidade quase sempre em conflito com as ideias vigentes, principalmente, quando o tema envolve a natureza dos seres. 

É por volta de 1950 que Adélia começa a escrever seus primeiros versos. Nessa época, conclui o curso ginasial no Ginásio Nossa Senhora do Sagrado Coração. Formada em Filosofia, curso para o qual entra com o marido, no mesmo ano de 1973, envia uma carta e em anexo os originais de seus novos poemas para o poeta e crítico literário Affonso Romano de Sant'Anna e ele quem os submete à apreciação de Carlos Drummond de Andrade.

Moça feita, li Drummond a primeira vez em prosa. Muitos anos mais tarde, Guimarães Rosa, Clarice. Esta é a minha turma, pensei. Gostam do que eu gosto. Minha felicidade foi imensa. Continuava a escrever, mas enfadara-me do meu próprio tom, haurido de fontes que não a minha. Até que um dia, propriamente após a morte do meu pai, começo a escrever torrencialmente e percebo uma fala minha, diversa da dos autores que amava. É isto, é a minha fala.

E a fala de Adélia preserva suas origens, universaliza o trivial, redecora o cotidiano simples com as cores só possíveis pela expressão artística. Ou seja, se sua matriz literária encontra amparo nos autores acima referidos, sua dicção estabelece uma novidade poética na literatura brasileira. Se repararmos, mesmo o comum em Carlos Drummond, aparece revestido de qualquer aura sublime; na poesia de sua conterrânea, tudo é franciscano.

É o contato com os originais de Adélia que levam, dois anos adiante,
 Drummond sugerir a Pedro Paulo de Sena Madureira, da Editora Imago, a publicação da mineira; um gesto nobre do poeta que, como sabemos, se repetiu com alguns outros nomes da literatura que angariam novos espaços e leitores; vide o caso Cora Coralina. Ao poeta de sete faces, os poemas de Adélia eram “fenomenais”. Mais tarde ele dirá: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo.” 

Carlos Drummond  envia aqueles originais que chegaram através de Affonso Romano de Sant'Anna e assim nasceu Bagagem. No dia 9 de outubro de 1975, ele já menciona na “De animais, santo e gente” no Jornal do Brasil o trabalho ainda inédito de Adélia. A frase acima referida é desse texto que conclui dizendo: “Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis. Como é que eu posso demonstrar Adélia, se ela ainda está inédita, aquilo de vender livro à porta da livraria é pura imaginação, e só uns poucos do país literário sabem da existência deste grande poeta-mulher à beira-da-linha?”

Bagagem, meu primeiro livro, foi feito num entusiasmo de fundação e descoberta nesta felicidade. Emoções para mim inseparáveis da criação, ainda que nascidas, muitas vezes, do sofrimento. Descobri ainda que a experiência poética é sempre religiosa, quer nasça do impacto da leitura de um texto sagrado, de um olhar amoroso sobre você, ou de observar formigas trabalhando.

O livro é lançado no Rio de Janeiro, em 1976, com a presença de Antônio Houaiss, Raquel Jardim, o próprio Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Juscelino Kubitschek, Affonso Romano de Sant'Anna, Nélida Piñon, entre outros. Desde então, ela tem se revelado em diversas frentes da matéria literária. É a poeta reconhecida, mas também é a romancista, a contista ou a autora de teatro.

Em 1978, apresente O coração disparado, livro com o qual recebe o Prêmio Jabuti. E depois deste, estreia em prosa no ano seguinte com os contos de Soltem os cachorros. Com o sucesso de sua carreira como escritora, Adélia vê-se obrigada a abandonar o magistério, após 24 anos de trabalho. Na sua produção literária, agora é vez do teatro. Sua peça, O Clarão, um auto de natal escrito em parceria com Lázaro Barreto, é encenada em Divinópolis, mas não foi um texto que passou para o livro.

O transe poético é o experimento de uma realidade anterior a você. Ela te observa e te ama. Isto é sagrado. É de Deus. É seu próprio olhar pondo nas coisas uma claridade inefável. Tentar dizê-la é o labor do poeta.

Em 1981, publica Terra de Santa Cruz. Quatro anos depois, sai o romance Os componentes da banda. Em 1987, a atriz Fernanda Montenegro estreia, no Teatro Delfim, no Rio, o espetáculo Dona Doida: um interlúdio, baseado em textos de livros de Adélia. Esta montagem fez grande sucesso. Foi ser apresentada em diversos estados brasileiros e, também, nos Estados Unidos, Itália e Portugal.

Em 1991 reúne toda obra poética até então (e a parte essencial da sua atividade neste gênero) Poesia Reunida, uma antologia que tem sido reeditada continuamente, sempre que aparece um novo livro. Naquela ocasião além dos já referidos Bagagem, O coração disparado e Terra de Santa Cruz, reuniu-se O pelicano (1987) e A faca no peito (1988). 

Em 1994, após anos de silêncio poético, sem nenhuma palavra, nenhum verso, ressurge com o romance O homem da mão seca. Livro este que segundo a autora foi iniciado em 1987, mas, depois de concluir o primeiro capítulo, foi acometida de uma crise de depressão, que a bloquearia literariamente por longo tempo.

O que se passou? Uma desolação, você quer, mas não pode. Contudo, a poesia é maior que a poeta, e quando ela vem, se você não a recebe, este segundo inferno é maior que o primeiro, o da aridez.” 

Ainda na prosa vieram o romance Manuscritos de Felipa (1999), os contos de Filandras (2001), a novela Quero minha mãe (2005) e os infantis Quando eu era pequena (2006) e Carmela vai à escola (2011). E, na poesia: Oráculos de maio (1999), A duração do dia (2010) e Miserere (2013).

Deus é um personagem principal em sua obra. Está em tudo. Não apenas Ele, mas a fé católica, a reza, a lida cristã.

Tenho confissão de fé católica. Minha experiência de fé carrega e inclui esta marca. Qual a importância da religião? Dá sentido à minha vida, costura minha experiência, me dá horizonte. Acredito que personagens são álter egos, está neles a digital do autor. Mas, enquanto literatura, devem ser todos melhores que o criador para que o livro se justifique a ponto de ser lido pelo seu autor como um livro de outro. Autobiografias das boas são excelentes ficções.

Em 2024, sua obra é marcada por dois importantes reconhecimentos. Primeiro, a Academia Brasileira de Letras outorga-lhe o Prêmio Machado de Assis; dias depois, o júri do Prêmio Camões concede-lhe a mais importante honraria das literaturas de língua portuguesa, justificando que “Adélia Prado é autora de uma obra muito original e que “é há longos anos uma voz inconfundível na literatura de língua portuguesa 

Solo de clarineta

As pétalas da flor-seca, a sempre-viva,
do que mais gosto em flor.
Do seu grego existir de boniteza,
sua certa alegria.
É preciso Ter morrido uma vez e desejado
o que sobre as lápides está escrito
de repouso e descanso, pra amar seu duro odor
de retrato longínquo, seu humano conter-se.
As severas.

“Alguns personagens de poemas são vazados de pessoas da minha cidade, mas espero estejam transvazados no poema, nimbados de realidade. É pretensioso? Mas a poesia não é a revelação do real? Eu só tenho o cotidiano e meu sentimento dele. Não sei de alguém que tenha mais. O cotidiano em Divinópolis é igual ao de Hong-Kong, só que vivido em português.

Dia

As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
 ia dizer imoral 
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.


Notas: 
* Este texto foi atualizado em 26 de junho de 2024.

** Os poemas aqui citados foram coletados do site Jornal de Poesia. As informações biográficas apresentadas e os depoimentos referidos ao longo da matéria são do site Releituras.

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