No país dos homens, de Hisham Matar

Por Lorraine Adams 



O que uma criança pode entender do totalitarismo? No excelente romance de estréia de Hisham Matar, essa pergunta transcendo o campo do psicológico para alcançar algo de raro na ficção contemporânea: uma trama sofisticada, dominada por arquétipos, narrada pela lógica de um menino de 9 anos e escrita com ênfase e o lirismo característicos da poesia.

Esse maravilhoso livro foi alvo de diversas campanhas de marketing, mas não deixe que alguém te fale, como os publicitários fizeram na Inglaterra logo que No país dos homens apareceu, que esse é um Caçador de pipas líbio. A criação de Matar poderia estar ambientada em qualquer região do mundo: a Líbia, terra natal do escritor, fica livre de suas idiossincrasias, tornando-se simplesmente um virtual país totalitário. E, ao contrário do best-seller de Khaled Hosseini sobre dois garotos no Afeganistão, o romance de Matar é livre tanto nos lugares-comuns quanto de enfeites. O cerne do livro vai além de alguns temas isolados. Matar produziu um retrato atemporal do infantilismo do mal.

No país dos homens lembra 1984, Fahrenheit 451 e as outras grandes ficções científicas na medida em que cria um universo sem sentido e de uma simplicidade cruel. O garoto, que é narrador, só às vezes é capaz de enxergar alguma coerência no mundo. Por que sua mãe toma um "remédio" e mesmo assim fica doente? Seu melhor amigo lhe diz que as mulheres são todas doentes. Como pode ser isso? O menino tem suas dúvidas. Por que insistem em lhe dizer que seu pai viajou a negócios se ele o viu andando no centro da cidade? Por que, sendo seu pai um amante de livros, de repente sua mãe os queima? Por que sua mãe fica tão nervosa quando o vê conversando com o homem com a cara cheia de marcas de varíola, que fica parado na frente da sua casa em um carro branco, o mesmo que lhe traz doces e pergunta o nome dos amigos de seu pai?

O narrador passa o livro inteiro se questionando. Este é um dos mais poderosos temas de Matar: as intricadas raízes da traição vagarosamente tomam forma. O garoto trai seu melhor amigo, sua mãe e um amigo do pai - e trairia seu pai, se as coisas tivessem encaminhado nessa direção. Enquanto vai perdendo a fé, sua capacidade de sadismo se particulariza. Ele joga uma pedra e, ainda que negue que quisesse acertar um amigo fragilizado, um menino que ele respeita, acaba ferindo-o gravemente. O narrador tenta salvar um mendigo da vizinhança de um afogamento, mas acaba, ele mesmo, batendo no rosto do homem.

O garoto se questiona depois de cada acontecimento, fraco e cheio de vergonha. Mas então o dia passa, o que ele viveu desaparece, e não há nenhum aprendizado. Gradualmente, começamos a perceber que os atos de um sistema despódico são semelhantes à vida interior de qualquer garoto. Com a base afetiva fraturada, mimado, impressionado com multidões que se comportam como robôs, cheio de vícios ocultos, o garoto e o sistema compartilham uma confusa puerilidade. Como a famosa frase de Orwell - "A guerra pacifica, a liberdade escraviza, a ignorância revigora" -, o mundo erdeu suas basses, ou, na formulaçao de Matar, ele aprendeu quais são elas.

O leitor adulto percebe, naturalmente, o que o menino não consegue. A mãe doente, sobre quem ele tanto fantasia, é vítima do álcool. O amigo de seu pai, um cavalheiro, que se recusa a qualquer traição e deixa entrever que em sua nobreza tem íntima relação com seu conhecimento histórico. O tão famoso Guia, cujo retrato está pendurado por todo lado, é, com certeza, Muammar el-Kadafi. A vizinha do outro lado da rua, apelidada de "Antena" porque é informante do serviço de inteligência, é capaz de colocar as pessoas atrás das grades". Os sobreviventes que se escondem, os moralistas, o Guia, são todos personagens da sociedade totalitária.

Talvez Matar tenha uma compreensão tão refinada disso tudo por causa de uma longa reflexão sobre suas próprias experiências. Como narrador, ele nasceu em 1970 e deixou a Líbia, pela última vez, em 1979. Seu pai, um ex-diplomata dissidente exilado no Egito, foi seqüestrado em 1990, preso e torturado em Trípoli. Ele ouviu falar do pai pela última vez em 1995. O regime de Kadafi prendeu ou enforcou três primos, um tio e vários dos amigos de Matar. Quando dá entrevista ou redige artigos, ele se mantém publicamente calmo. Como romancista, seu autocontrole é impressionante.

Isso também ajuda na criação da prosa poética. Logo na primeira página, o garoto descreve uma árvore da janela do quarto de sua mãe, "ela é timidamente verde na luz matinal". Os óculos de sol que seu pai usa são "duas lentes escuras curvadas como cascos de tartaruga em cima dos olhos". A voz de sua mãe parece "um pequenino peixe nervoso e solitário no fundo do mar". As unhas dos dedos do mendigo "se parecem com os bicos dos pássaros".

O auge do livro é também sua mais terrível imagem: o momento em que o menino, sua mãe e um amigo da família assistem a uma execução televisionada, muito comum na Líbia de Kadafi, que no livro acontece em uma quadra de basquete. O menino vê um vizinho subir uma "larga e rígida escada de alumínio" e percebe "a cada degrau ele pára e implora por clemência".

* Revista Entrelivros, mai de 2007, p. 72

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