Itinerários da poesia de Zila Mamede
O cavalo e menino
a Pablo Picasso
Era o cavalo em pêlo
em pêlo era o menino, e os dois
– mais sua solidão, mais seu destino.
Ninguém sabe se o cavalo angustiava
a tarde,
se do menino era a angústia
que o cavalo tocava.
Os dois passavam sempre abstraídos
(na tarde que continham)
da campina de cinzas que os cercava.
Se de um, se de outro, súbito
chegava o grave canto,
já se sabia – era a tarde dos dois:
que a do menino,
contida numa estrela aparecia,
e a do cavalo,
sobre montões de feno se dobrava.
(Zila Mamede, Exercício da palavra)
Este é o quarto livro de Zila Mamede, onde toda sua poesia foi reunida, codificada, projeto que delimita fases, mas quer sobretudo, encontrar a linguagem despojada, assumindo um processo que alcança o grande valor de procurar/tentar novas soluções para o verso.
[...]
Um livro que pode ter uma virtude: não peca, pela unicidade, pela virtude bem comportada de um equilíbrio de fórmulas, vez e tema. Para aqui, confluem as várias vozes do poeta, sua pesquisa incessante, sua hora de ir e voltar, de conhecer e desconhecer, do uso deliberado de formas que correspondem à necessidade de uma poesia mudar e equipar-se para uma viagem moderníssima, ou o retorno a formas que eram as da geração poética antes mesmo dos anos 50.
(Sanderson Negreiros)
Zila Mamede – itinerário e exercício da poesia (parte IV): Exercício da palavra – exercício da palavra urbana e exercício da palavra em Zila Mamede
por Paulo de Tarso Correia de Melo*
“Deste giro de olho
precisão recolho”
(Moça na janela – Exercício da palavra)
O primeiro dístico do poema “Moça na janela”, citado acima, se não resume, pelo menos chama a atenção para o que de mais imediato se percebe quanto ao conteúdo e estrutura de Exercício da palavra, editado em Natal, pela Fundação José Augusto, em 1975.
O “giro do olho” evoca uma mudança de ângulo de visão temática, no caso desse volume, antes de tudo urbana. A “precisão” parece ser a grande obsessão formal do livro. Mesmo a balada, a cantiga, e o mais alentado “Romance de Lua-Lua” são mais contidos e despojados. Zila Mamede tenta e consegue, na maior parte dos poemas, dar uma forma especial às preocupações visuais perceptíveis em seu trabalho, desde algumas imagens de Rosa de pedra.
O título também é revelador. Em Exercício da palavra, Zila consegue tomar a linguagem como princípio e fim. Segundo a poeta, “este título não é gratuito, ele resulta de todo um exercício de retomada de uma profissão – e eu digo profissão consciente”, contempla em seguida. Apesar de grande parte da crítica brasileira, Antônio Olinto e Nelson Werneck de Sodré, entre outros (OLINTO, Antônio. “O Arado”. O Globo, Rio de Janeiro, 15 de janeiro 1961, Porta de Livraria e SODRÉ, Nelson Werneck. “Poesia”. O Semanário, Rio de Janeiro, 13 de maio 1960) esperaram e mesmo cobraram um sucedâneo a O Arado; Exercício da palavra somente apareceu quinze anos depois. Durante o intervalo, Zila não deixou de escrever, deixou apenas de publicar poesia. Grande parte desse tempo foi também consumido pela preparação e publicação (em 1970) do levantamento bibliográfico Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual, 1918-1968. Após a “saturação intelectual” decorrente de trabalho de tal porte, Zila começa a trabalhar na Coordenação do Livro Literário do Instituto Nacional do Livro, em Brasília, e recomeça a escrever poesia pensando em publicar.
Considerados os intervalos duradouros entre alguns dos poemas que compõem Exercício da palavra, o seu conjunto não perdeu uma certa unidade essencial. Garantem-na a temática quase toda urbana e atual e, mais ainda, a forma da maioria dos poemas que tratam de assuntos inusitados, nunca antes (ou raramente) tratados em poesia: a manicure, a promissória, o fusca, o flamengo, o câncer, a encíclica e o fim de semana.
Em alguns desses poemas e com o mínimo de palavras, Zila realiza aquele repentino acento metafísico, entrevista no segundo dos dois quartetos de Salinas, transcritos nesse trabalho. É o que acontece, por exemplo, em “A Ponte”:
Salto esculpido
sobre o vão
do espaço
em chão
da pedra e de aço
onde não permaneço
– passo.
O “salto esculpido sobre o vão do espaço” é também um súbito salto metafísico garantido por uma única palavra – “passo” ao final do poema.
A palavra nos evoca um sentido de transitoriedade e o faz de maneira insólita e poeticamente rica, sobretudo se se atenta para o contraste intencionalmente oposto entre a transitoriedade do “passo” e as sugestões de perenidade em “pedra” e “aço”, permitindo outras sugestões metassignificantes para as palavras “vão”, “espaço” e “chão”, presentes no poema em definitiva textura.
Em outros poemas do livro, a descarnada metafísica de “A ponte” está presente. De forma sutil, na sugestão de câncer ao final do poema sobre a maternidade; perpassando os poemas “O edifício” e “Salmo 39”. Devem-se notar ainda as súbitas sugestões metalingüísticas ao final dos poemas “A manicure”, e “A mudança”, além do corte cinematograficamente ampliativo na 3.ª parte do poema “O ferreiro”, o que lhe dá uma dimensão quase cósmica, ou, no mínimo o urbaniza, integrando-o mais a Exercício da palavra, esta “queda de pássaro no asfalto”.
À altura de Exercício da palavra vale tentar algumas considerações sobre o uso das palavras na poesia de Zila Mamede, perspectiva que de longe, se tem a pretensão de esgotar em todos os seus aspectos nesta introdução.
Um inventário vocabular da poesia de Zila Mamede, desde Rosa de pedra, descobre de imediato a preocupação da poeta com três grupos particulares de palavras, fato que vai ter consideráveis implicações no seu discurso poético total:
1. Palavras de emprego poético inusitado;
2. Palavras que tentam reproduzir e incorporar ao poema o vocabulário nordestino;
3. Palavras que tentam ou conseguem ser verdadeiras criações léxico-semânticas.
O primeiro grupo está melhor representado em Rosa de pedra e Exercício da palavra, o segundo em Salinas e O arado e o terceiro em O arado. Em momentos mais remotos da poesia de Zila, esta preocupação com a palavra chegava mesmo a comprometer alguns poemas, sugerindo facilidade ou incapacidade artesanal ao leitor menos avisado.
ANEXOS
Manicure
Longes nome e fala
no rosto:
na sala
mundo-mãos-em-fila
Instrumentação
ágil de acetona
Pela mesa o jogo
da cutelaria
Rosalã-verniz
nessa multifária
química dos dedos
que nas mãos diária
dez punhais recria.
(Zila Mamede, Exercício da palavra)
O edifício
Visão: campo em vertical
o morto sem raiz
dorme: concreto e cal.
Estrutura em que
o morto numeral repousa
nem nome (nem lousa).
Morte que sobe o morto
e o delimita:
morto seu rés-de-chão desabita.
(Zila Mamede, Exercício da palavra)
A mudança
a meu Pai
O caminhão: na boléia
a mulher e o cão
A vitrola
o vaso de gerâneos
o par de botas
sobre a capota
A mó a concertina
os matolões os faróis
(a querosene) juntos na mesma vida
Num berço de vime
o terço (que redime)
a espingarda (que mata)
Refletidos no armário de espelho
a chibata
o pássaro de gaiola
o relho
Tange a mudança o homem com seu rosto:
engenho que o desgosto
desgasta de uma rua a outra.
(Zila Mamede Exercício da palavra)
Ferreiro
a meu avô Miguel
1. Ferramenta na mão
o homem dobra a carne do ferro
as vísceras do ferro
a alma do ferro
Funde no fogo primitivo
dentaduras e mecanismos
que submete a seus dedos de azeite
Uma dor (a que é sua)
gira que gira na
vorá (velo) cidade do esmeril
onde o atrito proclama sóis-contraste
(na escuridão da veste).
2. E o homem:
a forja
o ferro
a linhagem
tatuando-lhe olhos e unhas
Hálitos de suor e sono
dão a têmpera do ofício-pão
do homem:
os sóis de ferro
a vida em ferro
da brasa ao berro.
3. (Um satélite lá fora come o espaço:
“A terra é azul e o infinito é negro”,
diz Gagarin.
A televisão explode lua em luas)
(Zila Mamede, Exercício da palavra)
Ligações a esta post:
>>> Exercício da palavra: exercício da palavra urbana e exercício da palavra em Zila Mamede
>>> Zila e eu
* Paulo de Tarso Correia de Melo é professor do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Texto do autor publicado em MAMEDE, Zila. Navegos; A herança. Natal, 2003, p. 27-32.
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