Jorge Fernandes e seu livro de poemas

Por Pedro Fernandes


O ano é 1920. A capital do Estado se resumia a uma cidade provinciana; quase parada. A noite natalense resumia-se às festas da Igreja e, como atesta-nos o poeta Veríssimo de Melo, aos raros dias de agitação da política nacional. No cenário literário apenas os cafés eram os centros da boemia, das atividades culturais e dos saraus recheados de sonetos. Isso também nos é constatado nos vários textos que Câmara Cascudo escrevia nos jornais da época.

Num deles, “Cabelos curtos ou compridos”, em 1924, no jornal A Imprensa, Cascudo apresentava o resultado duma pesquisa no mínimo engraçada, mas que refletia bem o espírito do povo norte-rio-grandense por essa época: fez ele uma entrevista com quinze pessoas – poetas, jornalistas, comerciantes, teatrólogo, médico –, perguntando acerca do cabelo feminino, se o preferiam curto à moda inglesa ou se longos e encaracolados. O resultado foi que seis votaram pelo primeiro, seis pelo segundo e três pelos dois, o que nos leva a perceber que, apesar do provincianismo havia no espírito certa inquietação ou necessidade pelo moderno. Basta lembrar que, já por essa a época o sul do País já era agitado pelas influências vanguardistas que desembocaram na Semana de Arte Moderna, 1922.

As inquietações dessa pequena parcela da população norte-rio-grandense traduzida na voz solitária de Câmara Cascudo, já, certamente, profundo conhecedor das transformações porque passava o País seriam respondidas, pelos menos no campo literário, sendo mais específico, no campo da poesia, esta, ainda presa à forma métrica e tradicional do verso, noutra voz, a de Jorge Fernandes. Ele foi o primeiro, no Rio Grande do Norte, a cantar no verso livre, sem rima; ele foi o primeiro a escandalizar a pacata cidade escrevendo desse jeito, completamente fora do alto requinte literário.

À moda do Caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade, Jorge publica, em 1927, o seu Livro de Poemas que também era um simples caderno de oitenta e seis páginas, em brochura, mais largo que comprido, em papel de segunda categoria. Outra novidade é que os exemplares desse livro eram distribuídos, o que talvez tenha contribuído para o maior desprezo que a ele foi dado, servindo mesmo muitos deles nas bodegas até como papel de embrulho para embalar barras de sabão. Tamanha agressividade do poeta não pára por aí: os quarenta poemas que se apresentam nessa edição trazem também estranheza e espanto não apenas pela fuga das tradicionais formas parnasianas, mas pela presença de novos recursos de linguagem que dão uma forma nova de construção poética: vem o texto carregado de elementos do sertão nordestino, do linguajar popular – algo como já fizera Ferreira de Itajubá – de recursos onomatopaicos e, sobretudo, da síntese e do cotidiano, seja este o da Capital ou do interior do Estado. Jorge refletia o seu tempo e o tempo, não só o dele, estava mudando, mesmo que todos não percebessem nada ao seu redor.

O resultado disso é que a obra foi mal-recepcionada. Ficou o livro esquecido durante mais de quatro décadas, até a realização dum trabalho de resgate feito por um grupo formado por Veríssimo de Melo, Newton Navarro e Lenine Pinto, entre outros jovens, sendo ele republicado, finalmente, em 1970, pela Fundação José Augusto, através do próprio Veríssimo de Melo. Nele, além dos poemas publicados na primeira edição, também vem acrescido doutros poemas inéditos, recolhidos dos jornais da época. Seis anos depois, a mesma Fundação José Augusto traz uma edição fac-similar do livro de Jorge Fernandes.

A edição de 1970 foi que mais deu respaldo a obra do poeta, porque já fora ela pedida por pessoas influentes do meio literário no eixo Rio–São Paulo, como Manuel Bandeira, e foi ela, sem dúvida, a grande divulgadora da obra de Jorge Fernandes. Sem dúvida também é que a importância dessa obra não reside apenas no respaldo que ela adquire nas rodas literárias do sul do País. Ela inaugura um novo modo de fazer poesia que previa, ou pelo menos anunciava movimentos outros como o da Poesia Concreta, que apesar de buscar suas raízes nas vanguardas européias e na poesia internacional dum Mallarmé, dum Pound, dum Cummings ou dum Apollinaire, já em Jorge se fazia presente os recursos que estes traziam: subdivisões prismáticas de idéias, o espaço em branco do papel como elemento substantivo da composição poética – citem-se os poemas “Té-téu” e “Rede”; a palavra-ideograma ou o método ideogrâmico – cite-se o modo como se apresenta grafada a palavra “Suspensa”, no poema “Rede”; atomização de palavras – cite-se o poema “Canção do Inverno”; o poema como visão, mais do que como realização.

Essa rápida constatação nos faz perceber que é por tudo isso que o livro de Jorge Fernandes é caracterizado por Câmara Cascudo, no posfácio feito à obra, como um livro isolado, sozinho, descolado no cromo da sala de jantar dos poetas de sua geração. No Estado, apenas a obra de Palmira Wanderley, iguala-se ao caráter da poética de Jorge. Ainda parafraseando Câmara Cascudo, há no espírito poético de Jorge originalidade natural e lógica, brilho, coragem honesta e moça, limpidez, sobriedade, fulgor.

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* Este texto foi publicado no Caderno Domingo do Jornal De Fato, no domingo dia 07 de setembro de 2008, na edição 321 do referido caderno.


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