Machado Assis: O espetáculo do tédio ou a baba de Caim
Por Carlos Faraco*
“E foi assim
que cheguei à cláusula dos meus dias; (...) como quem se retira tarde do
espetáculo.”
Quem fala é
o narrador defunto de Memórias Póstumas de Brás Cubas, comentando sua
própria morte. Fica implícita também no trecho uma das comparações freqüentes
na obra de Machado: a vida encarada como espetáculo. E que tipo de espetáculo
os romances de Machado nos oferecem? A sociedade fluminense na época do Segundo
Reinado. Espetáculo tratado de duas maneiras distintas ao longo da obra.
Aceitando a
divisão de sua literatura em duas fases – conforme já consagrado pela crítica
–, os romances se distribuem dessa forma: 1ª fase: Ressurreição (1872); A
mão e a Luva (1874); Helena (1876); Iaiá Garcia (1878);
2ª fase: Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881); Quincas Borba (1891); Dom
Casmurro (1899); Esaú e Jacó (1904); Memorial de Aires (1908).
Diante dessa
esquematização, poderíamos concluir que na trajetória de Machado ocorreu uma
mudança brusca, uma verdadeira ruptura no modo de escrever; mas não é verdade.
O que aconteceu, como já salientamos, foi o amadurecimento gradual, lento,
progressivo, apesar de o primeiro romance da segunda fase ser revolucionário,
não sé em relação aos anteriores, mas também em ralação a toda a história da
literatura brasileira.
Como
resultado do estudo, da reflexão, da leitura de autores clássicos, Machado vai
caminhando em direção a plenitude de seu estilo. E o que se entende, afinal,
por plenitude de estilo? Uma maneira de escrever pessoal, própria,
inconfundível, com características únicas, só dele. E com qualidade, é claro.
Desde o
início, sente-se a preocupação de Machado em desligar-se da moda reinante em
sua época, à procura dessa maneira de escrever que carregasse a sua marca
pessoal. A obra da segunda fase conclui esse processo.
Obviamente,
nenhum artista consegue evitar as influências do momento histórico em que vive.
Tendo passado pelo Romantismo e pelo Realismo, Machado assimilou
características de ambos, mas não se enquadra radicalmente em nenhum desses
estilos.
Podemos
dizer, grosso modo, que os romances da primeira fase tendem ao Romantismo e os
da segunda fase ao Realismo.
Nos romances
da primeira fase, no entanto, juntamente com procedimentos típicos de outros
autores românticos já se podem notar algumas novidades. A principal delas:
enquanto nos romances românticos os personagens em geral comportam-se de acordo
com aquilo que lhes dita a paixão amorosa, Machado cria seres que ambicionam
sobretudo mudar de classe social, ainda que isso lhes custe sacrificar o amor.
Excetuando Ressurreição, esse é o tom dos outros três romances dessa fase.
Nesses
romances (como já observamos em relação aos contos dessa fase) sente-se que
Machado ainda está cultivando sua escrita, preparando alguma novidade, deixando
escapar, vez por outra, alguns ingredientes daquilo que breve nos iria
oferecer: o seu inconfundível estilo.
Diante das
inúmeras possibilidades de assunto que a vida e a imaginação oferecem, cada
escritor seleciona aqueles que lhes despertem interesse e lhe parecem dignos de
se transforma em literatura. E cada um trata desses assuntos de diferentes
maneiras. Machado centrou seu interesse na sondagem psicológica, isto é, buscou
compreender os mecanismos que comandam as ações humanas, sejam eles de natureza
espiritual ou decorrentes da ação que o meio social exerce sobre cada
indivíduo. Tudo temperando com profunda reflexão. E veja bem: reflexão e
análise não se confundem com o simples relato, com mero ato de “contar
histórias”.
O romance Memórias Póstumas de Brás Cubas anuncia essas novidades. Nesse livro já fica claro que
o interesse do escritor deixaria de recair sobre os fatos que se constituem a
narrativa (Machado escolhe sempre ações comuns, banais até). O que vai
interessar são os labirintos do espírito humano, de onde o escritor extrai seus
temas: a morte, a luta entre o bem e o mal (em que o segundo sempre vence), a
crueldade, a ingratidão, a sensualidade, o adultério, o egoísmo, a
vaidade.
“Por que é
que uma mulher bonita olha muitas vezes para o espelho, se não porque se acha
bonita, e porque isso lhe dá certa superioridade sobre uma multidão de outras
mulheres menos bonitas ou absolutamente feias?”
(Memórias Póstumas de Brás Cubas)
“Teme a
obscuridade, Brás; foge do que é ínfimo. Olha que os homens valem por
diferentes modos, e o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros
homens”
(Memórias Póstumas de Brás Cubas)
“A minha
primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e queridos também,
quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me.”
(Dom
Casmurro)
Machado
chama a atenção para a face negativa do homem e da vida, a face má da natureza
humana, jogando para escanteio a bondade e a grandeza. Uma atitude típica
daqueles que só enxergam o lado ruim das coisas. E isso tem nome: pessimismo.
“- Não tive
filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”
(Memórias Póstumas de Brás Cubas)
Nessa visão
pessimista, o homem aparece como um ser irremediavelmente corrompido e sem
saída diante das forças que comandam seu destino.
“Não se luta
contra o destino; o melhor é deixar que nos pegue pelos cabelos e nos arraste
até onde queira alçar-nos ou despenhar-nos.”
(Esaú e Jacó)
O espetáculo
da vida é, por isso, regido de fora do indivíduo:
“O destino
não é só dramaturgo, é também o seu próprio contra-regra, isto é, designa a
entrada dos personagens em cena, dá-lhes cartas e outros objetos, e executa
dentro os sinais correspondentes ao diálogo (...)”
(Dom
Casmurro)
É um
espetáculo tedioso:
“Tédio por
dentro e por fora. Nada que espraiasse a vista e descansasse a alma.”
(Quincas
Borba)
Conseguir
livrar-se do tédio nesse espetáculo é coisa rara:
“As
aventuras são a parte torrencial e vertiginosa da vida, isto é, a exceção”
(Memórias Póstumas de Brás Cubas)
Machado vê
tudo impassivelmente, quando não com impiedade. O sofrimento, a dor, o
desespero merecem, por parte do escritor, apenas a fria constatação, um ironia
ferina ou até o cinismo.
“O cancro é
indiferente às virtudes do sujeito; quando rói, rói; roer é o seu ofício.”
(Memórias Póstumas de Brás Cubas)
“A onça mata
o novilho porque o raciocínio da onça é que ela deve viver, e se o novilho é
tenro tanto melhor: eis o estatuo universal.”
(Memórias Póstumas de Brás Cubas)
O único
romance da segunda fase que se distancia relativamente desse padrão é Memorial
de Aires, em que podemos sentir um tom lírico e uma visão de mundo menos
amarga. Nos outros é muito difícil encontrar personagens que revelem pureza,
bondade, desprendimento. Quando esses comportamentos ocorrem, são frutos da
dissimulação, pois servem só para ocultar algum interesse particular e
mesquinho:
“Quem não
sabe que ao pé de cada uma bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes
outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra
daquela”. (Memorial de Aires)
Os
personagens são marcados por impulsos contraditórios e, por isso, não podem ser
classificados em bons ou maus. Então, no mundo machadiano tudo passa a ser
relativo, variável de acordo com o ponto de vista que se assume diante das
coisas.
“Todos os
contrastes estão no homem”
(Esaú e Jacó)
“Não se
compreende que um botocudo fure o beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau.
Essa reflexão é de um joalheiro.”
(Memórias Póstumas
de Brás Cubas)
A própria
natureza é vista como mãe e inimiga, pois criou o mundo mas mantém-se
impassível diante do sofrimento humano.
Constata a
hipocrisia, a maldade, a dissimulação, o que resta como saída? O humor, o que
funciona como disfarce, como válvula de escape para a angústia e o tédio. Mas
que ninguém se iluda: o humor não consegue esconder uma grande amargura. É um
humor irônico, pessimista, melancólico.
“Não te
irrites se te pagarem mal um beneficio; antes cair das nuvens que de um
terceiro andar”
(Memórias Póstumas de Brás Cubas)
Quanto ao
modo de narrar, os acontecimentos aparecem fragmentados e funcionam mais como
pretexto para o autor desnudar a essência do ser humano nas diversas
circunstâncias de sua vivência. Por isso, a narrativa machadiana não ser prende
à seqüência de começo, meio e fim.
“Que
multidão de dependências na vida, leitor! Umas coisas nascem de outras,
enroscam-se, desatam-se, confundem-se, perdem-se, e o tempo vai andando sem se
perder a si.”
(Esaú e Jacó)
A linguagem,
além dos recursos já apontados, surpreende pelo emprego de metáforas e
comparações que causam impacto pela originalidade – “desembainha um olhar
afiado e comprido”; pelo poder de sintetizar situações em pouquíssimas
palavras, criando imagens brilhantes – “Marcela amou-me durante quinze meses e
onze contos de réis; nada mais, nada menos”; pela conversa constante com o
leitor, convidando-o a refletir sobre a vida ou sobre o próprio romance que
está lendo.
Sintetizando:
para quem vê o mundo dessa forma, tudo é relativo. E, num mundo em que nada é
absoluto, não se justifica amar nem odiar. Só restam a indiferença, o ceticismo
e, às vezes, a lembrança do passado:
“Creiam-me,
o menos mau é recordar, ninguém se fie da felicidade presente; há nela uma gota
de baba de Caim.”
(Memórias Póstumas de Brás Cubas)
>>> Machado de Assis: o espetáculo do tédio ou a baba de Caim
*FARACO,
Carlos. Machado de Assis – Um mundo que se mostra por dentro e se esconde por
fora. In: ASSIS, Machado de. Histórias sem data. São Paulo: Ática, 1998.
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