Itinerários da poesia de Zila Mamede
Zila Mamede acompanhada de Câmara Cascudo |
Mar morto
Parado morto mar de minha infância
sem sombras nem lembranças de sargaços
por onde rocem asas de gaivotas
perdendo-se num rumo duvidoso.
Pesado mar sem gesto, mar sem ânsia,
sem praias, sem limites, sem espaços,
sem brisas, sem cantigas, mar sem notas,
apenas mar incerto, mar brumoso.
Criança penetrando no mar morto
em busca de um brinquedo colorido
que julga ver no morto mar vogando.
Infância nesse mar que não tem porto,
num mar sem brilho, vago, indefinido,
onde não há nem sonhos navegando.
(Zila Mamede, Rosa de pedra)
“Conheci-a em princípios da década de 70, quando João Cabral de Melo Neto me pediu que enviasse a Zila algumas das edições raras de sua obra, que eu tinha aqui na biblioteca, e de que ela precisava para a bibliografia crítica da oba de Cabral, que estava elaborando. Comuniquei-me com Zila, para saber o que ela desejava receber, mas Zila achou que seria imprudente correr o risco de um extravio postal, dispondo-se a vir um dia a S. Paulo. Bastou ela dizer isso para que Guita (minha mulher) e eu a convidássemos para uma temporada em nossa casa, coisa que ela aceitou, para grande prazer nosso”.
(José Mindlin)
Zila Mamede – itinerário e exercício da poesia (parte I): Rosa de pedra – da paisagem interior ao mar
por Paulo de Tarso Correia de Melo*
“Arranco de mim mesma esta matéria”
(Soneto Transcendental – Rosa de pedra)
Rosa de pedra, o primeiro livro de Zila Mamede, apareceu em 1953.
Inicialmente, seria editado no Rio, através das “Edições Hipocampo”, então sob a direção de Geir de Campos e Thiago de Mello. Fato não muito raro no país, e ainda menos em se tratando de publicação de poesia, a editora faliu. O livro, pronto desde 1951, somente foi publicado dois anos depois, pela Imprensa Oficial do Rio Grande do Norte.
Desde algum tempo antes, o nordeste, principalmente o Recife, e também a região centro-sul, principalmente o Rio de Janeiro, tomavam conhecimento da chamada “Geração Pós-45”. Seguindo-se a Mauro Mota, Ledo Ivo e outros, apareceram poetas como Carlos Pena Filho, César Leal, Edmir Domingues e a própria Zila, que publicavam constantemente seus poemas em suplementos literários do Recife e do Rio de Janeiro.
Rosa de pedra, portanto, não escapa às características da geração pós-45, e até da anterior “Geração de 45”, notadamente no que diz respeito à revalorização e novas propostas para o soneto, determinadas constâncias temáticas e uma espécie de lirismo ingenuamente surrealista (embora muitas vezes bem conseguido), manifesto na introdução a O tempo da busca, primeiro livro do citado Carlos Pena. Fato interessante e que vem reforçar as características referidas como razoavelmente generalizadas é que Zila Mamede e Carlos Pena, embora começado a escrever poesia mais ou menos simultaneamente não leram um ao outro antes da publicação de seus respectivos primeiros livros.
Primeira edição de Rosa de pedra |
Vinte e cinco anos depois, Rosa de pedra, livro que a autora classifica “intuitivo” e ao qual outros não deixaram de apontar os pecados do principiante, ainda justifica a “desmedida admiração” e a condição de “um dos melhores livros de versos brasileiros” que lhe atribuiu Manuel Bandeira em Poesia e prosa, editado pela Aguillar, 1958 (BANDEIRA, Manuel. Poesia e prosa. Rio de Janeiro, Aguillar, 1958, v. 2. “Epistolário”, p. 1457, Carta 107 e p. 1459, Carta 109). Ainda hoje é compreensível o entusiasmo do poeta maior, através de uma leitura atenta de sonetos como “Mar Morto”, “Soneto para o momentâneo reencontro da perdida infância”, “Soneto noturno para o Rio Capiberibe” e “Soneto triste para minha infância”. Nestes poemas e em outros, Bandeira deve ter visto virtualidades diferentes das que registram resenhas geograficamente mais próximas. Vale dizer que elas foram também consideravelmente positivas. César Leal, por exemplo, escreveu que “Rosa de pedra, lançado em 1953, com exceção das Poesias de Emílio de Moura, foi, no Brasil, a mais forte realização poética do ano” (Jornal do Comércio, Recife, [1954?]).
Para a maior parte das resenhas, no entanto, o maior entusiasmo foi quanto à temática, generalizadamente definida em termos de “infância e mar”, o que é parcialmente inexato. Além disso, uma consulta comparativa aos poemas e aos comentários sobre eles revela, atualmente, algumas inexatidões críticas.
No que diz respeito à temática, o itinerário poético de Zila Mamede começa menos em uma infância temporal, situada e datada em um mar objetivo que, muito mais, dentro da poeta mesmo. Entre as características de principiante, mais ressaltadas no tocante à forma, estruturação e linguagem dos poemas, se insere também esta subjetividade exaltada que, ao mesmo tempo, deseja e não consegue objetivar-se eficientemente, essa ânsia de desvendar essa inquietude de saber “das flâmulas trementes nos penhascos”, que a transposição para a 3.ª pessoa, no “Soneto da tua paisagem interior”, não é suficiente para ocultar e perpassa todo o Rosa de pedra. Ele é, majoritariamente, um livro de paisagem psicológica, onde, como escreveu Osman Lins, em 1960, estava “uma infância de simples alusões, que apenas vivia nas palavras. Uma infância decorativa por assim dizer” (LINS, Osman. Zila e a terra. Jornal do Comércio, Recife, 16 de julho de 1960, p. 1-2, 2. Caderno).
E, não raro, um mar interior, poderia se acrescentar. Um mar muito mais como símbolo de libertação, de fuga, de escape, segundo situou Cezário de Mello, em comentário de 1953 (MELLO, Cezário de. A poesia de Zila Mamede. Folha da Manhã, Recife, 20 dezembro 1953).
Uma visita de olhos a outros poetas da mesma geração talvez explique o destaque excessivo dado pela crítica da época à infância e mar presentes – mas não mais importantes presenças – em Rosa de pedra. Assim, no primeiro livro de Carlos Pena Filho, em 16 sonetos, 9 trazem alusões marinhas. No segundo, o mesmo acontece com 8 poemas, entre os 20 que compõem o livro. Aquela era a época de vigência dos conselhos de Rilke nas Cartas a um jovem poeta. Escreva sobre a natureza e a infância. Ora, o mar é, sem dúvida, a mais forte presença natural nordestina, e Pena chegou, talvez por esses motivos, à síntese entre infância e mar, no soneto “Elegia”:
Mas como percorrer verde distância
do cemitério aquático da amiga
sem mergulhar também na minha infância?
O mar também era uma espécie de mundo onírico, carregado de inumeráveis símbolos e imagens, ao gosto igualmente surrealista, já referido como característico da época. Esse gosto era o que fazia Pena declarar:
Não falarei de coisas, mas de inventos
e de pacientes buscas no esquisito
Exatamente isso também tentava fazer Zila Mamede, em Rosa de pedra, e se tal fato vai aqui realçado é porque essas incursões por um relativo automatismo psíquico, controladas pela forma do soneto, como acontece, por exemplo, em seu “Soneto do sonho geográfico” e no mais bem conseguido “Soneto noturno para o Rio Capiberibe”, são de extrema importância para a evolução e pesquisa de seu vocabulário e linguagem poética. É difícil duvidar de Manuel Bandeira não tenha tido a atenção chamada para essa experimentação de linguagem, desde que em Zila, mais audaciosa que Carlos Pena, sente-se algumas vezes, o voluntário sacrifício da “pureza e elegância do verso”, como César Leal caracteriza o último, em benefício da experiência com palavras e expressões até então inusitadas em poesia. A pesquisa formal posterior de Zila Mamede, portanto, já se prenuncia em Rosa de pedra essa preocupação com a palavra é um aspecto que os comentaristas da época raramente registraram. Preferiram os entusiasmos a respeito da “Canção do oceânico”, por exemplo, onde apenas o experiente Domingos Carvalho da Silva reclamou o que havia de excessivamente acessório (SILVA, Domingos Carvalho da. Três poetas estreantes. Letras e Artes, São Paulo, 25 de maio de 1954).
Rosa de pedra, graças ao que já deixava entrever da linguagem da poeta e, ainda mais, pelos seus medidos acentos de desesperança no tratamento de procuras, sonho, morte e outros roteiros estranhos, ultrapassa de longe o nem dominante binômio infância-mar e é um digno livro de estréia.
ANEXOS
Soneto para o momento reencontro da perdida infância
Não. Esse não, porque esse quadro encerra
os seus limites infantis de outrora
quando plantava as mãos de medo e terra
nos flocos de algodão sujos de aurora.
Não esse quadro antigo em que se aferra,
surda, uma dor que uma criança antes chora
perdida no caminho que a desterra
e no pranto que então seus anos mora.
Esse não: que ainda busca o procurado
abismo de onde os traços seus, feridos,
surpreendem voz pedindo claros sons.
Não essa inútil forma em céu crestado
descolorindo os ecos ressurgidos
nos dedos que inventaram os lírios tons.
(Zila Mamede, Rosa de pedra)
Soneto noturno para o Rio Capiberibe
Nos mistérios do rio me perdi,
na amargurado rio me encontrei
na flor que beijava a flor do rio
senti minha saudade anoitecer.
O rio fez-se ventre onde nasci:
sua água tem o pranto que chorei
quando o vento, pousando o leito, frio,
quis da espuma meu sangue recolher.
Sou pontes, sou granito, sou letreiros,
sou mangues, sou barcaças, sou cantigas
desenhando petróleos na torrente.
Sou rio que compõe os seus barqueiros
dos soluços da margem que, ora, antiga,
gera flores e lama, indiferente.
(Zila Mamede, Rosa de Pedra)
Ligações a esta post:
>>> Rosa de pedra: da paisagem interior ao mar
>>> Zila e eu
* Paulo de Tarso Correia de Melo é professor do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Texto do autor publicado em MAMEDE, Zila. Navegos; A herança. Natal, 2003, p. 19-23.
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