As vidas de Gertrude Stein e Alice B. Toklas
Por Iker Seisdedos
Alice B. Toklas e Gertrude Stein |
Uma boa
pergunta pode ser a linha mais curta a uma resposta adequada. Como puderam
sobreviver duas velhas lésbicas judias na França ocupada durante a II Guerra
Mundial? Esta é uma boa pergunta. A partir dela, a jornalista Janet Malcolm
pesquisou sobre a escritora experimental Gertrude Stein e sua companheira e secretária
pessoal durante décadas, Alice B. Toklas. A resposta foi publicada em três artigos
no New Yorker e depois recolhida no
livro Duas vidas: Gertrude e Alice.
Quando a
guerra estourou em 1939, Stein e Toklas, talvez o casal mais pitoresco das
letras estadunidenses já haviam saído de sua casa na rua parisiense Fleurus, um
dos cenários clássicos do que ficou conhecido como “geração perdida”. O termo
foi criado pela escritora para referir-se aos amigos literatos, aventureiros e
expatriados. Viviam então tranquilamente entre as frequentes visitas de Picasso,
Hemingway ou Man Ray em Culoz, lugar ao sul da França sob jugo nazista desde
1940.
Entre esses
amigos, que frequente a tiveram como mecenas, figurava Bernard Faÿ. Tradutor de
Stein para o francês, foi nomeado nesse mesmo ano – em substituição a um judeu –
diretor da Biblioteca Nacional. Num de seus habituais encontros com o marechal
Pétain, falou em Vichy em favor de “Gertrude, de seu gênio, do perigo que corria”,
segundo recolheu em suas memórias, escritas em 1966 – vinte anos depois de ser condenado
por crimes de guerra, e quinze de que Toklas lhe ajudasse a fugir de um
hospital penitenciário com o dinheiro obtido da venda de algumas das obras de
arte herdadas de Stein. “O marechal escreveu uma carta ao subprefeito de Belley
na qual dava instruções para que se ocupasse de que não lhe faltar calefação e
solicitava para elas mantimentos em dobro em carne e manteiga”.
Muitos
leitores se revoltaram quando os textos de Malcolm foram publicados nos Estados
Unidos. A jornalista ficou famosa com a publicação de O jornalista e o assassino e por suas pesquisas sobre Tchekhov,
Freud e Sylvia Plath. Quem sabe o que qualquer de nós haveria feito nessa situação?
Não é possível culpá-las. Eram apenas sobreviventes. E nada prova que foram conscientes
sobre os vínculos de Faÿ até terminar a guerra.
Stein, morta
aos 72 anos, em 1946, quase dois anos depois da libertação de Paris, não viveu
muito no remorso. Toklas, ao contrário, suportaria duas décadas. “Só posso
qualificá-lo de maravilhoso, e lhe disse vais dormir em camas em que há seis
semanas dormiam os oficiais alemães, maravilhoso, valha-me Deus, absolutamente
maravilhoso”, escreve Stein com a particular sintaxe sobre a chegada dos “americanos”
a Culoz em As guerras que vi, memória
de suas experiências com as duas guerras.
O leitor assiste
assombrado a assimilação que Stein faz dos horrores da contenda à medida que
esta avança. No início aconselha a alguns jovens a ponto de serem deportados
para a Alemanha, “que aprendam seu idioma e conheçam melhor sua literatura, que
se sintam como turistas ao invés de prisioneiros”. Uma ideia que o inconfundível
estilo metafórico de Malcolm compara a “silvar na escuridão para afugentar os
medos”. E logo teme a escalada da violência no povoado ante o cariz desfavorável
que a guerra toma para os alemães.
Tanto os
benefícios da amizade com Faÿ como a mera condição de judias do casal estão fora
da abundante produção memorialística de Stein, a quem se pinta em Duas vidas como uma reacionária
simpatizante de Franco. Assim, “o cheiro de uma boa história” teve que chegar a
Malcolm graças ao O livro de de
Alice B. Toklas. Não é uma obra de culinária e muito menos escrita por
Toklas, mas Stein, noutra de suas graças, a mesma que deu título ao mais acessível
e mais famoso de seus romances, Autobiografia
de Alice B. Toklas.
A obra de Malcolm nasceu quando o New Yorker pediu uma contribuição para o especial de gastronomia. Foi
quando a jornalista desenterrou o livro de Stein que havia lido ainda na
juventude e pouco ou quase nada lembrava sobre. No capítulo sobre a comida na
Segunda Guerra Mundial não abundam precisamente os pratos e foi essa ausência
que levou Malcolm a buscar melhor sobre os assuntos que estavam escondidos no
seu entorno. Foi a chave de acesso para seus temas favoritos: a dificuldade de
apreender a verdade, a traição e a compreensão sobre a vaidade e outras debilidades
humanas.
Duas vidas acrescenta a lista das
inesquecíveis personagens de Malcolm Leon Katz, lendário entre os estudiosos de
Stein porque foi um dos raros que teve acesso irrestrito à vida de Toklas nos
anos 1950; também dá voz a outras figuras, como Edward Burns e Ulla Dydo,
autores de um artigo sobre a correspondência de Thornton Wilder no qual
revelava as conexões colaboracionistas de Stein. Trata-se de uma visita pessoal
à vida do casal. O asco que sentia Leo Stein ante a obra de sua irmã, a paixão
que governava a vida sexual das duas ou os papéis muito bem representados pelas
duas numa época perigosa. Constrói a imagem de uma extrovertida Stein e uma
abnegada Alice, encarregada de limpar, cozinhar e datilografar seus textos.
Também são
dissecados os sucessos literários de Gertrude Stein, sem reduzir-se à célebre tautologia,
apesar de enfeixados por ela: “Uma rosa é uma rosa é rosa”; um resumo sobre um ofício
pertinente e inovador para a prosa de língua inglesa. E se, por acaso, a obra não
reúne todos os ingredientes, talvez tenhamos de se deixar convencer pelas
últimas palavras atribuídas à escritora no seu leito de morte: “Se não há
pergunta tampouco há resposta”.
* Este texto é uma tradução livre para Las guerras de Gertrude y Alice, publicado aqui, em El País.
Comentários